Quando meu filho nasceu, eu e a mãe dele, de quem já estava separado, vivíamos a angústia de qualquer casal jovem que tem criança pequena, trabalha muito e não ganha tanto para montar um superesquema em casa. Decidimos matricular Gustavo, então com 4 meses, em uma escolinha da Zona Leste de São Paulo. A dona morava no mesmo condomínio da minha ex-companheira e todos no bairro davam boas referências de lá. Custava 1 400 reais por mês, um sacrifício, mas era em tempo integral e pagávamos pela tranquilidade de deixá-lo bem cuidado. Mal sabíamos que ele estava prestes a ser alvo de maus-tratos, uma monstruosidade sem tamanho que me abriu uma ferida no peito como nenhuma outra. Um adulto tem defesas. Já uma criança é presa fácil.
Assim que entrou na creche, Gustavo começou a adoecer com frequência. Achamos normal, fruto da convivência com outras crianças, até que a situação ficou mais séria. Recebemos uma ligação da escolinha dizendo que nosso filho estava mole, com dificuldade para respirar. Ele passou dois dias internado no hospital. Mas melhorou e nos tranquilizamos. Aos poucos, porém, fomos notando mudanças em seu comportamento. No meio da noite, começou a chorar mais e mais e a acordar assustado. Sempre que íamos pegá-lo na creche, parecia abatido. A diretora e as funcionárias prontamente explicavam: ora estava cansado de tanto brincar, ora sonolento porque havia acordado naquele instante. Hoje, olhando em retrospecto, me sinto mortalmente culpado por não ter percebido esses sinais que estavam bem na minha frente. Não me perdoo.
No início de março, veio a notícia que mudaria tudo. A avó do Gustavo foi pegá-lo na escola e avistou uma viatura da polícia na porta. Ficou nervosa e falou com a diretora, que, lacônica, avisou que faria uma reunião no dia seguinte para esclarecer os fatos. No encontro, ela alegou que se tratava de uma denúncia falsa, feita por uma ex-funcionária que pediu aumento e não levou. O tempo todo afirmava ser vítima de uma armação e pedia a solidariedade dos pais. Alguns a apoiaram, chegaram inclusive a abraçá-la. Resolvemos esperar o desenrolar do caso e ainda deixamos Gustavo na creche aquele dia. Minutos depois, deu-se o pesadelo. Uma professora escreveu à minha ex-companheira para que fizesse uma busca na internet com o nome da escola, Colmeia Mágica. Foi quando ela viu o fatídico vídeo, com imagens que nunca vão nos deixar. Gustavo aparecia com os braços amarrados por um lençol, em um bebê-conforto no chão de um banheiro sem ventilação, ao lado do vaso sanitário. As professoras alimentavam as crianças com a mesma colher. Um show de horrores.
Logo outros detalhes vieram à tona em relatos e vídeos em poder da polícia. Quando choravam, os bebês eram levados ao banheiro para não incomodar a vizinhança, e a diretora da creche colocava um pano no rosto deles, justificando que isso os acalmaria. Os mais velhos ficavam de castigo no chão da sala dela e dormiam, exaustos, depois de tanto berrar. Tenho chorado sem parar. Sinto que falhei em proteger meu filho, que completou 11 meses e foi torturado durante oito — ele e mais vinte crianças. Pedi licença no trabalho para ter tempo. Mesmo separados, eu e a mãe dele decidimos passar uma temporada juntos para lhe dar amor e cuidado. Por ora, não tenho coragem de deixá-lo com ninguém. Ele está agitado, debate-se durante a noite e não suporta que o cubram com lençol. Outro dia, fui à escola. Havia ali uma viatura e me aproximei da diretora. Queria entender algo que não entra na minha cabeça: por que meu filho foi maltratado desse jeito? Ela deu uns passos para trás, e o policial pediu que me acalmasse, que era para confiar na investigação. A responsável pela creche já foi presa por determinação da Justiça. Que ela seja exemplar ao punir os envolvidos e sirva para evitar que outras famílias sintam a mesma dor.
Leonardo Duarte em depoimento dado a Camille Mello
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782