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Terra dos enforcados

Santa Cruz do Sul tem o maior índice de suicídios do Brasil. Também tem uma das maiores produções de fumo do país. O que uma coisa tem a ver com a outra?

Por Solano Nascimento, de Santa Cruz do Sul
Atualizado em 4 jun 2024, 16h38 - Publicado em 26 out 2018, 07h00

O coveiro de Monte Alverne gosta de fazer contas. Calcula que já teve cinco automóveis Brasília e que só em uma das estradas das redondezas já houve quatro suicídios. “Aqui teve muita gente se enforcando”, diz Gilberto Bencke, o Pepe, de 58 anos, sentado em frente à mais recente Brasília, que a despeito da paixão do dono está sendo devorada pela ferrugem e tem as lanternas presas por fita adesiva. Apesar de conviver com a morte desde o fim da adolescência, quando começou a aprender com o pai o ofício que herdaria, Pepe estranha a quantidade de suicídios na região. “É um enterro muito mais triste.”

Monte Alverne é o primeiro e o mais importante distrito de Santa Cruz do Sul, município situado no Vale do Rio Pardinho, no centro do Rio Grande do Sul. É uma região de montes e depressões na qual carros de boi ainda transitam por estradas de chão batido e pedregulhos. Ao lado de quase todas as casas há uma estufa de tijolos à vista para secar fumo e, em frente a algumas delas, estátuas religiosas substituem anões de jardim. O estranhamento de Pepe faz sentido. No Brasil, a cada grupo de 100 000 habitantes houve, na última década, entre quatro e seis suicídios por ano, mas nas famílias dos fumicultores de Santa Cruz o número chegou a 76.

O fumo foi um dos produtos que os indígenas repassaram aos portugueses nas primeiras trocas pós-descobrimento. Ainda no século XVI, a planta começou a ser cultivada por colonos, principalmente na Bahia, e acabou servindo como moeda para a compra de escravos africanos. Em meados do século XIX, imigrantes alemães que chegaram à atual região de Santa Cruz trouxeram sementes de fumo na bagagem e, no século seguinte, o tabaco gaúcho desbancou o baiano na liderança do mercado.

Segundo maior plantador mundial de fumo, atrás somente da China, o Brasil lidera o beneficiamento e a exportação do produto. Do que se cultiva aqui, apenas 10% é consumido pelos brasileiros, o restante segue para fora. No ano passado, o país exportou 462 000 toneladas de tabaco, o que rendeu às fumageiras 2,1 bilhões de dólares. Esses números poderiam ter sido menores. Em maio de 2016, antes do impeachment de Dilma Rousseff, o Banco Central baixou uma resolução determinando que fumicultores interessados em crédito subsidiado precisariam aumentar a diversificação de culturas, reduzindo a dependência do tabaco. Em agosto daquele ano, já com Michel Temer no Palácio do Planalto, a determinação foi suspensa.

Terra dos enforcados
PARA ESQUECER – Maria Leoni, com o retrato da filha Angélica, no bar de beira de estrada (Emiliano Capozoli/VEJA)

Santa Cruz tem oscilado entre o segundo e o quinto lugares na lista dos maiores produtores de tabaco, mas é o maior beneficiador e exportador do produto no país, com parte do fumo transformada em cigarro ali mesmo e outra parte vendida picada. Com 118 000 habitantes segundo o censo do IBGE de 2010, Santa Cruz é o mais populoso município entre os maiores produtores de fumo, o que o credencia a comparações. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que não se façam índices de suicídio com pequenas localidades, nas quais um número baixo de mortes pode levar a uma estatística alta.

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Com base nesse critério, VEJA cruzou o número de suicídios dos últimos dez anos registrados pelo Ministério da Saúde com a população do mais recente censo do IBGE de todos os municípios brasileiros com mais de 100 000 habitantes. Santa Cruz aparece em primeiro lugar, com média anual de dezesseis suicídios a cada grupo de 100 000 habitantes. Em segundo lugar, aparecem Passo Fundo, também no Rio Grande do Sul, e Patos de Minas, em Minas Gerais, com média anual de doze suicídios por grupo de 100 000 cada uma. Em uma década, portanto, Santa Cruz registrou quarenta suicídios a mais em comparação com Passo Fundo e Patos de Minas. No Brasil, nesse período de 2007 a 2016, em média cinco pessoas tiraram a vida a cada ano por grupo de 100 000 habitantes. O Rio Grande do Sul manteve a tradição de ser o estado recordista em suicídios, com dez casos por 100 000 pessoas.

Os números do IBGE e da Secretaria de Agricultura mostram que em Santa Cruz do Sul as famílias de plantadores de fumo reúnem 12 000 pessoas, cerca de 10% da população do município. Apesar disso, com dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação, em cartórios de Santa Cruz e com familiares das vítimas, VEJA descobriu que a presença de fumicultores entre os suicidas vai muito além desses 10%. Em 2013, por exemplo, dos 25 suicídios ocorridos na cidade, oito foram de trabalhadores da cultura do fumo, de acordo com os registros oficiais. Projetando-se o número, conclui-se que, para cada grupo de 100 000 fumicultores, houve 67 suicídios — enquanto, entre a população em geral, esse número ficou em dezesseis por 100 000.

O recorde da década deu-se em 2011, quando 34 pessoas tiraram a vida em Santa Cruz, nove das quais eram fumicultores — um número que projeta 76 suicídios anuais por grupo de 100 000 pessoas ligadas à plantação de fumo. A mais jovem vítima naquele ano foi Angélica Vargas de Oliveira. Era uma adolescente linda e simpática, de 16 anos, que queria ser policial militar. Enforcou-­se perto da escola em Monte Alverne. Os pais da jovem abandonaram o plantio de fumo, deixaram a velha morada e cuidam de um mercadinho de beira de estrada onde jovens se reúnem no fim da tarde de domingo para beber e jogar sinuca. “A gente veio pra cá para ver se esquecia”, diz o pai, Sebastião Francisco de Oliveira, de 63 anos. “Mas não esquece.” A menina o ajudava desde criança na lavoura de fumo, mas não se descuidava dos estudos, como mostram os boletins dos quais a mãe nunca se desfez. “Ela só tirava notas altas”, orgulha-se Maria Leoni de Vargas, de 57 anos.

Quatro dias depois da morte de Angélica, Silomar Padilha, de 59 anos, enforcou-se na casa onde morava, em Alto Paredão, distrito vizinho a Monte Alverne. “Ele plantava fumo desde quando podia, desde a adolescência”, diz o irmão Senomar José Padilha, que anda de bombacha e chapéu. A menos de 5 quilômetros de onde Padilha se enforcou vive Alcido Schulz, de 77 anos. Ele parou de plantar fumo no ano passado, depois de mais de quatro décadas. Em 2011, precisou vender uma moto da família para pagar a lápide da sepultura do filho Valdomiro, que se enforcou aos 33 anos. “Era um guri que dos 8 anos para a frente estava na roça com a gente, sempre trabalhando.” Clerio Andre Schulz, de 38 anos, irmão de Valdomiro, mantém a lavoura com a ajuda da mulher e dos filhos. “O fumo é a sobrevivência da gente”, diz.

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“ENTERRO MUITO TRISTE” - O coveiro Gilberto Bencke, o Pepe, que estranha tantos suicídios (Emiliano Capozoli/VEJA)

Pelo relato da maioria dos familiares, os fumicultores que se mataram em 2011 apresentavam sinais de depressão. “Ele plantou fumo a vida inteira e estava com depressão havia anos”, diz Jonas Rachow, filho de Albino Rachow, que se suicidou aos 65 anos. “Ele estava se tratando com remédios”, informa Carine Krüger, irmã de Juliano Lindolfo Krüger, que se matou aos 34 anos. Completando a lista dos nove plantadores de fumo que se suicidaram em Santa Cruz em 2011, há ainda Renato Frantz, de 49 anos, José Carlos Severo, de 41, Guido José Sehn, de 63, e Valdori Göttems, de 32. Dos nove mortos daquele ano, seis usaram a forca para dar fim à própria vida. Existem ainda duas pessoas que VEJA optou por não incluir na relação dos nove porque deixaram a atividade faz algum tempo. Trata-se de uma fumicultora aposentada que abandonou o ofício quatro anos antes de se matar, quando já morava na cidade, e de um agricultor que parou de plantar fumo cerca de cinco anos antes do suicídio.

No começo dos anos 2000, um estudo nos Estados Unidos relacionou o trabalho de migrantes latinos na lavoura de fumo com a depressão. Em 2015, houve uma série de relatos de suicídio de plantadores de fumo do Estado de Andhra Pradesh, no sul da Índia. No Brasil, a primeira suspeita de relação entre suicídio e plantio de fumo apareceu em 1996. Um estudo de um grupo de pesquisadores gaúchos mostrou que o índice de suicídios em Venâncio Aires, município vizinho de Santa Cruz, à época com 61 000 habitantes, chegara a 37 casos anuais por grupo de 100 000 pessoas. O assunto atraiu a atenção da imprensa nacional e de forma esporádica voltaria a aparecer em reportagens nos anos seguintes, sempre com base em médias municipais de suicídio. No levantamento de 2007 a 2016, Venâncio aparece com uma média anual de 23 suicídios por 100 000 habitantes.

“O que a gente sempre vê são hipóteses ou probabilidades que não têm cunho científico”, diz Iro Shünke, presidente do SindiTabaco, que reúne as maiores indústrias do setor no país. “Para mim, isso está dentro da onda antitabagista.” Ele resgata o principal argumento de quem se opõe à ideia de que há uma relação entre suicídio e plantio de fumo. O problema seria a ascendência germânica de grande parte dos moradores da região. Uma espécie de autorrigor cultural levaria esses descendentes a se suicidar ante situações problemáticas.

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O cruzamento dos dados feito por VEJA compromete esse raciocínio. Municípios gaúchos que tiveram colonização alemã tão ou mais forte que Venâncio Aires e Santa Cruz apresentam índices de suicídio muito aquém daqueles dos produtores de fumo. É o caso de Campo Bom e Igrejinha, cujas médias anuais de suicídio de 2007 a 2016 foram, respectivamente, de sete e oito por grupo de 100 000. E regiões que produzem fumo e não foram colonizadas por alemães têm índices mais altos, como Dom Feliciano (treze) e Camaquã (doze).

Além disso, o perfil dos suicidas de Santa Cruz sepulta a tese germânica. Os sobrenomes dos mortos e de seus pais nas certidões de óbito de anos recentes revelam que a maioria dos suicidas no município não é descendente de alemães. No ano do recorde, 2011, mesmo entre os plantadores de fumo — atividade dominada por netos e bisnetos dos imigrantes —, um terço dos suicidas não tinha origem germânica. O perfil também mostra que o índice de suicídios é alarmante entre os fumicultores, e não no restante da população de Santa Cruz. Caso se tratasse de uma herança cultural, por que os descendentes de alemães que estão no comércio, na indústria, na prestação de serviços e mesmo em outras atividades agrícolas não se matariam como os plantadores de fumo?

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O PROCESSO – O preparo das mudas de fumo, antes de receberem qualquer agrotóxico (Emiliano Capozoli/VEJA)

O estudo gaúcho feito em 1996 indicava como provável causa de suicídios em Venâncio Aires o elevado uso de agrotóxicos na cultura do fumo. Depois, entre 1999 e 2001, um grupo multidisciplinar com dezenove pesquisadores de três instituições — Universidade de Santa Cruz do Sul, Universidade Estadual de Campinas e Universidade Federal do Rio de Janeiro — entrevistou e examinou moradores de 147 propriedades rurais que cultivam fumo em Santa Cruz do Sul e arredores. Descobriu que 20% deles haviam sido vítima de episódios de intoxicação aguda com agrotóxicos, alguns com até nove incidentes. A análise da saúde mental de 315 fumicultores revelou que um quarto deles já havia utilizado medicamentos “para os nervos, para dormir ou para depressão”. Do grupo, dezessete apresentavam ideação suicida e, entre os 298 restantes, um total de 21% tinha familiares que se suicidaram. Do total, 44% atingiram o nível do que os pesquisadores chamaram de “suspeição de caso de morbidade psiquiátrica”. Conclui o estudo: “Pode-se aceitar como verdadeira a hipótese de que os agrotóxicos empregados indiscriminadamente no cultivo do tabaco causam intoxicações e distúrbios neurocomportamentais nos membros das unidades familiares de produção”.

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Mais recentemente, outra hipótese passou a ser estudada. Desde o início desta década, pesquisadores de diversos países vêm investigando o que chamam de efeito “em forma de U invertido” da nicotina. Ao ser absorvida por uma pessoa com depressão, a substância iniciaria seu caminho por uma extremidade do U e teria efeito aparentemente positivo até chegar à base da letra. Em seguida, a própria substância passaria a aumentar os sintomas da depressão. Os estudos mais comuns nessa linha são realizados em fumantes pesados, mas o outro grupo populacional exposto a doses altas de nicotina é o dos fumicultores. Na tese de doutorado que defendeu há quatro anos na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, a pesquisadora Nadia Spada Fiori fez uma revisão de dez estudos de cinco países — Índia, Brasil, Estados Unidos, Malásia e Itália — para mensurar a nicotina no organismo de plantadores de fumo. A conclusão: os fumicultores estão expostos à nicotina tanto quanto ou mais que os fumantes pesados.

A médica Neice Faria, pesquisadora associada da UFPel, investiga a saúde de fumicultores e outros agricultores há mais de duas décadas. Em artigo publicado há quatro anos na respeitada revista NeuroToxicology, resultado de um estudo com 2 400 fumicultores de São Lourenço do Sul (RS), além de reforçar a ideia da relação entre agrotóxicos e transtornos mentais, ela se deteve nos plantadores que, no ano anterior à pesquisa, haviam sofrido com a chamada doença da folha verde, que indica intoxicação por nicotina no contato da pele com o fumo. Esses agricultores foram separados em dois grupos: os que tiveram de um a três episódios da moléstia e os acometidos quatro ou mais vezes. No primeiro grupo, 26% apresentavam transtornos como ansiedade, depressão e pânico. No segundo, 47%.

Uma associação entre agrotóxicos em excesso e intoxicação por nicotina pode explicar por que os suicídios são muito mais comuns em municípios produtores de fumo do que naqueles especializados em outras culturas nas quais também há utilização de grandes quantidades de fungicida, inseticida e herbicida. O estudo de São Lourenço foi realizado em três fases que envolveram diferentes períodos de cultivo de fumo e duraram ao todo oito meses. “Um rapaz que estava na primeira e na segunda etapas da pesquisa não foi à terceira”, lembra Neice Faria. “Ele se matou.”

Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2018, edição nº 2606

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