As pessoas não devem se lembrar do meu rosto, menos ainda do meu nome. Mas talvez se recordem do triste episódio no qual acabei envolvido. Por volta das 5 e meia da manhã do dia 10 de março de 2013, um domingo, eu pedalava rumo ao trabalho numa ciclofaixa que estava sendo montada na Avenida Paulista, em São Paulo, quando minha visão escureceu. Um carro prateado invadiu a faixa em que eu estava e, em uma violenta batida frontal, arrancou meu braço direito. A irresponsabilidade daquele motorista, Alex Kozloff Siwek, que fugiu e disse ter atirado meu braço em um córrego — o membro jamais foi encontrado, e dizem que poderia ter sido costurado se o tivessem mantido no local onde tudo aconteceu —, me trouxe um prejuízo enorme. Graças ao socorro de dois anjos da guarda, ele não me tirou algo maior: a vontade de viver. Aceitei a nova realidade já no segundo dia de internação e fiz um pedido à minha mãe: “Quero um caderno de caligrafia”, disse. Como era destro, tive de aprender a escrever com a mão esquerda. Foi a maior dificuldade que enfrentei nestes últimos seis anos.
Nunca conversei com Alex, que, segundo os laudos do processo, tinha ingerido álcool naquela madrugada. Cheguei a dizer que o perdoaria, pois queria me libertar da raiva e da mágoa que senti depois do ocorrido. Mas ele nunca me procurou, nem mesmo para saber se eu estava bem. Para piorar, seus advogados querem pôr em mim a culpa pelo acidente. Hoje, confio na justiça divina. Nós nos cruzamos durante as audiências, mas ele nunca me olhou nos olhos. Eu o encarava, e ele virava o rosto. Ele pode mentir para os outros, mas não para mim. Nós dois sabemos o que aconteceu quando ele começou a derrubar aqueles cones.
Minha mãe não queria que eu voltasse a pedalar, mas fui teimoso. Minha válvula de escape sempre foi o esporte, especialmente o ciclismo, presente em minha vida desde os 11 anos. Assim que deixei o hospital, fui até uma bicicletaria pesquisar preços. Contei minha história e acabei ganhando uma bicicleta de presente do dono. Nunca tive medo de pedalar na rua, até porque não foi a bicicleta que arrancou meu braço, mas, sim, um motorista imprudente. Hoje, além de ser meu instrumento de trabalho, a bike é minha fonte de esperança. Trabalho no acervo do Esporte Clube Pinheiros e faço entregas em domicílio para a loja de um amigo. Ganho 600 reais de salário mais benefícios de 580 reais. É pouco, mas o suficiente para pagar o aluguel da casa onde vivo com minha mulher, Cris, e dois cachorros. Em breve, quero ter um emprego fixo e realizar meu maior sonho: tornar-me um atleta paralímpico de ciclismo.
Um patrocinador está abrindo as portas para o universo competitivo, bancando as viagens e a manutenção da bicicleta. Minha rotina de “treinos” é diária e intensa, pois faço tudo sobre duas rodas. Pedalo 32 quilômetros de casa até o serviço e outros 30 para realizar as entregas. Já participei de eventos de mountain bike, mas gostaria de competir em provas de velocidade. O esporte sempre fez parte da minha vida. Lutava capoeira, boxe e jiu-jítsu. Hoje pratico muay thai e rapel. Ironicamente, eu era goleiro (e dos bons) antes do acidente. Agora me divirto jogando na linha com os amigos.
Enquanto sonho com uma medalha, os processos seguem em andamento. Alex foi condenado criminalmente por lesão corporal, com a agravante de não ter prestado socorro, e recorre do veredicto em liberdade. Quero acabar com isso quanto antes. Na esfera cível, o atropelador diz que não tem como pagar a indenização pedida, de 200 000 reais, o que acho uma mentira. O justo, para mim, seria uma indenização vitalícia, para que ele ponha a mão na consciência e se lembre todo mês do que causou. Pelos absurdos que vem cometendo, sinto mais pena do que raiva. Com certeza vivo melhor que ele, pois tenho a consciência limpa.
Depoimento dado a Luiz Felipe Castro
Publicado em VEJA de 28 de agosto de 2019, edição nº 2649
Conheça os podcasts de VEJA
No episódio da semana, a trajetória do carioca Marcelo Freixo, que já inspirou personagem no cinema