Símbolo da guinada ambiental, Marina sofre com isolamento no governo
Encruzilhada em que se encontra a ministra, sem muito clima para conciliação, tem potencial para afetar a imagem de Lula
Duas semanas após ter sido eleito para o seu terceiro mandato, Luiz Inácio Lula da Silva desembarcou no Egito para a primeira agenda internacional: participar da COP27, a conferência ambiental global das Nações Unidas. Lá, anunciou a volta do Brasil ao protagonismo nesse tema e tirou da manga uma cartada simbólica: a presença na Esplanada de Marina Silva, que voltaria a comandar a área na qual é uma referência mundial. Lula fez um grande esforço para se reaproximar de Marina, de quem estava distante desde 2008, quando ela saiu do mesmo ministério atirando contra o que considerava retrocessos. Menos de seis meses depois desse retorno, no entanto, o cenário de nuvens políticas sobre a ministra é nebuloso: ela sofre com a perda de poder e o isolamento político.
Na primeira passagem pela Esplanada, Marina comprou briga com ao menos dois ministros — Dilma Rousseff (Minas e Energia) e Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos) — em razão da política para a Amazônia. Agora, sofre enormes pressões em razão da negativa pelo Ibama, órgão de sua pasta, de licença para explorar petróleo na bacia da foz do Rio Amazonas. Isso a colocou em rota de colisão com outros ministros, como Alexandre Silveira (Minas e Energia), com a Petrobras, com governadores do Norte e Nordeste, com aliados como o líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues (AP), que deixou a Rede, partido da ministra, justamente em razão das diferenças com Marina. Para completar a encrenca política, ao falar publicamente sobre o assunto, Lula disse que achava “difícil” não poder explorar petróleo na Amazônia, deixando no ar a impressão de que pode arbitrar a favor da Petrobras. Num cenário típico de tempestade perfeita, quando uma frente de desgaste estava em grande ebulição, abriu-se outra, só que externa: liderados por parlamentares de centro-direita, o Congresso mudou a Medida Provisória 1 154/2023, que reorganiza os ministérios, para tirar atribuições da pasta comandada pela ministra.
Marina sentiu o golpe — e criticou tanto os que, na visão dela, estavam contra uma decisão técnica (no caso do petróleo) quanto quem atuou para esvaziar sua pasta. O rebuliço provocou uma série de reuniões no Planalto para tentar equacionar as duas questões. Algumas ações em curso podem minimizar os estragos da MP. No caso do petróleo, o problema tem potencial mais explosivo. Marina, em tese, ganhou o primeiro round ao fazer valer o parecer do Ibama contra a exploração. Ficou decidido que um novo pedido seria reapresentado — o que foi feito pela Petrobras — e que o governo iria providenciar a Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS), um estudo amplo que aponta os impactos não só ambientais, mas sociais e econômicos, de uma atividade petroleira.
As discussões técnicas para autorizar ou não os trabalhos seguem quentes entre Petrobras e o órgão ambiental. Marina e o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, dizem que esse estudo amplo é exigido por uma portaria interministerial de 2012 que fixou a sua exigência. “Para a equipe técnica, esse é um ponto que pesa bastante”, afirma Agostinho. A Petrobras discorda, ressaltando que pede autorização apenas para pesquisar o potencial de petróleo, uma atividade de baixo impacto e curta duração, e que os planos de emergência e de preservação da fauna atendem às exigências para o licenciamento para a fase de pesquisa. Lembra, ainda, que o poço fica a 170 quilômetros da costa, que estudos mostram que não há risco de vazamento e que nunca teve acidente com perfuração em água profunda.
A discussão pode se alongar, pois o Ibama tem até um ano para avaliar o novo pedido, mas é provável que a temperatura política encurte esse prazo. O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), aliado do governo e comandante de um dos estados mais interessados na exploração de petróleo, não poupou críticas. “Para ganhar narrativa, a turma age de maneira sorrateira na estratégia de comunicação e faz parecer que estamos derrubando árvore para fazer exploração. Isso é molecagem”, afirma. No Amapá, o clima não é mais ameno. Audiência pública feita na última semana em Oiapoque reuniu Randolfe Rodrigues, o senador Davi Alcolumbre (União) e o governador Clécio Luis (Solidariedade). O deputado estadual Inacio Monteiro Maciel (PDT), organizador do evento, lembrou que o projeto tem sinalização favorável de Lula, mas o governo contempla hoje “composições opostas”, em referência ao Meio Ambiente. Agostinho admite que tem sido alvo de assédio político. “Entendo a pressão, mas não posso me pautar por isso. Se fosse uma licença fácil, o governo Bolsonaro teria emitido”, diz.
De fato, o imbróglio amazônico tem uma história longa e tortuosa. Tudo começou em 2013, quando a ANP (Agência Nacional do Petróleo) fez licitações para a exploração de 45 blocos na Margem Equatorial, uma faixa que se estende por 2 200 quilômetros, do Amapá ao Rio Grande do Norte. Catorze lotes estão na bacia da foz do Amazonas. O consórcio entre a Petrobras e a inglesa BP Energy arrematou o bloco 59, epicentro da atual polêmica, e apresentou o pedido de licenciamento no ano seguinte.
Desde então, foram inúmeros pedidos do Ibama para que as empresas apresentassem estudos necessários para a área. Satisfazer as exigências do órgão ambiental não é uma tarefa fácil, algo que antecede o atual governo. A última licença foi emitida em 2015, para uma bacia no Rio Grande do Norte. Em 2018, o Ibama negou autorizações a dois blocos vizinhos ao 59. Pelo menos 95 poços já foram perfurados na bacia do Amazonas, mas somente em águas rasas. A maioria deles acabou sendo abandonada por dificuldades operacionais ou acidentes mecânicos. Em 2020, a BP Energy passou 100% do negócio do bloco 59 à Petrobras, devido às dificuldades do licenciamento.
A despeito das resistências ambientalistas, uma questão que não é uma exclusividade do Brasil, a exploração de petróleo é feita hoje em várias partes do mundo em locais considerados sensíveis. Um levantamento da ONG alemã Lingo aponta 2 905 iniciativas de exploração em 835 áreas de proteção e preservação ambiental de 91 países. Entre elas estão o Mar Vermelho (Egito), as Montanhas Rochosas (Canadá) e o Parque Nacional Yasuni (Equador), na mesma Amazônia, que abriga indígenas isolados e foi considerada Reserva da Biosfera pela Unesco em 1989. Em março, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, também autorizou explorar petróleo nas geleiras do Alasca — o projeto pretende extrair 18 bilhões de barris em trinta anos. Na Margem Equatorial, a expectativa é extrair 30 bilhões até 2030.
A corrida em busca das últimas reservas é uma luta contra o tempo — e o iminente fim da era do petróleo. A Petrobras diz que é sua prioridade investir na chamada transição energética, em busca de fontes de energia renováveis, mas alerta que não será possível prescindir do petróleo nos próximos anos. “As atividades de petróleo e gás continuarão sendo essenciais para viabilizar essa transição, tanto do ponto de vista financeiro, quanto para garantir a segurança energética”, afirma Prates. Além disso, o momento para explorar as reservas pode ser exatamente este. “Depois, pode não valer a pena, pois o petróleo tende a entrar em desuso. Isso pode ocorrer entre trinta e quarenta anos”, avalia o economista Adriano Pires, especialista em energia. A riqueza que pode estar escondida na foz do Amazonas não é nada desprezível. Segundo a Petrobras, a expectativa é de encontrar ali um novo pré-sal, com estimativa de reservas de 30 bilhões de barris, o que aumentaria a produção diária do país em um terço.
A briga de Marina contra uma parte do governo na questão do petróleo da Amazônia vem em má hora para a ministra, atingida em cheia pela MP. O esvaziamento do Ministério do Meio Ambiente era uma demanda antiga do Congresso. Ainda durante a transição, a bancada ruralista fez uma estruturação paralela, já retirando as atribuições sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a Agência Nacional de Águas da pasta. Para esse grupo, a ministra não teria a isenção necessária para, por exemplo, arbitrar sobre questões relacionadas à construção de hidrelétricas ou à concessão de propriedades rurais. “Não faz sentido o CAR ficar no Ministério do Meio Ambiente, especialmente quando os dados são utilizados para criminalizar as atividades da agropecuária”, afirma o deputado Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.
O pior para a ministra é como o esvaziamento foi desenhado. O relator da MP, Isnaldo Bulhões (MDB-AL), garante que todas as alterações foram apresentadas ao governo. O ministro Rui Costa participou de um jantar na casa de Bulhões, acompanhado do ministro das Cidades, Jader Filho (MDB), mas se empenhou apenas para evitar a retirada do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) da Casa Civil. O mesmo Rui Costa, no dia 22 de maio, participou de uma reunião na casa do seu colega da Agricultura, Carlos Fávaro, onde foi advertido que a votação do marco temporal para a demarcação de terras indígenas era uma condição dos ruralistas para apoiar o arcabouço fiscal. De novo, ouviu e assentiu. Nos últimos dias, a situação da ministra virou motivo de chacota e irritação dentro e fora do governo. Na terça-feira 30, assim que entrou no plenário, um deputado abordou Bulhões, deu dois tapinhas em seu peito e disse, aos risos: “A Marina quer falar com você”. O relator riu de volta: “Se ela quiser, eu falo. É ela que está contra o governo, eu votei tudo junto”, respondeu ele, que também é líder do MDB. O senador Davi Alcolumbre também ironizou a ministra e disse que seria bom ela não sair do governo. “É bom ela ficar para inaugurar o poço com a gente”, disse.
A queda de braço atual é a reedição de um velho — e pobre — dilema do Brasil: como compatibilizar atividade econômica e preservação ambiental. Na ditadura militar, o governo incentivava a ocupação da Amazônia com slogans como “Toque sua boiada para o maior pasto do mundo”. No período da redemocratização, esse discurso deu lugar à ideia do desenvolvimento sustentável. Na prática, porém, pouco se avançou nessa direção diante das necessidades. A própria Marina assinou o PAS (Plano Amazônia Sustentável), em 2008, que ficou só no papel, embora sua gestão tenha tido o mérito inegável de ter iniciado o processo que reduziu em níveis recordes a taxa de desmatamento da Amazônia. O combo que impede a exploração econômica racional da Amazônia inclui a falta de vontade e a inapetência política, a inexistência de projetos realmente efetivos, a falta de articulação entre as diferentes iniciativas e a dificuldade de conciliar visões opostas. “Quem tenta o meio do caminho esbarra na resistência de dois grupos: um querendo altíssimos lucros e o outro, uma perfeição inatingível em termos de proteção ao bioma”, diz Augusto Rocha, professor associado da Universidade Federal do Amazonas.
Enquanto isso, a Amazônia permanece na mesma ou pior. Segundo estudo do instituto Imazon, o IPS (índice de progresso social) da região piorou desde 2014 — de 57,31 para 54,59 em 2021, abaixo da média nacional (63,29). O IPS é composto apenas de indicadores sociais e ambientais e agregado em três dimensões — Necessidades Humanas Básicas, Fundamentos para o Bem-Estar e Oportunidades. Não por acaso, o pior indicador foi o de Oportunidades (41,80). Embora ao longo de igual período, os indicadores de desmatamento tenham caído, houve nos últimos anos um aumento das infrações ambientais, em parte pela permissividade do governo anterior, e o mais grave: a expansão e diversificação de atividades criminosas como garimpo, caça, pesca e tráfico de drogas — atividades que encontram terreno fértil para prosperar em meio à falta de perspectiva econômica de boa parte da população.
Dentro dessa sinuca de bico ambiental, a encruzilhada em que se encontra Marina tem potencial para afetar a imagem de Lula. O mundo é bastante sensível à pauta ambiental brasileira. Um exemplo veio na terça 30, quando a Câmara aprovou o marco temporal, que prevê que os indígenas só podem reivindicar terras que já ocupavam antes da Constituição de 1988. “Não é um bom sinal”, disse a deputada alemã Anna Cavazzini, vice-presidente da delegação do Parlamento Europeu para relações com o Brasil. Há a avaliação de que, diante do apreço internacional por Marina, ela é uma figura “indemissível” por Lula, ainda mais logo depois da confirmação da realização em 2025 da COP30, a cúpula do clima, em Belém, no Pará. “O governo não pode dizer ao mundo que concorda com o enfraquecimento da pauta ambiental e indígena, porque isso é desautorizar o próprio presidente”, avalia Marcio Astrini, secretário-geral do Observatório do Clima.
Aliado de Marina, o presidente do Instituto de Desenvolvimento Social (IDS), Ricardo Young, diz que ela e sua equipe “estão serenos”. “O governo é uma aliança, uma frente, tem muitos interesses”, relativiza. A questão, no entanto, diz respeito a quanto o presidente Lula será capaz de conciliar os interesses de um Congresso conservador (incluindo uma bancada ruralista maior e mais empoderada), as pressões em torno da urgência da evolução econômica da Região Norte (o petróleo na Amazônia é visto como uma chance imperdível) e as bem-intencionadas ideias da ministra. O que se viu nos últimos dias mostra que não há muito clima para uma conciliação, mas é preciso urgentemente encontrar o caminho do equilíbrio entre tantos interesses e necessidades. Mesmo às voltas com o isolamento político e a perda de poder, Marina Silva pode ainda ajudar o país a equacionar esse importante dilema.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2023, edição nº 2844