Sem alinhamento ideológico, mas fiel a Lula: Zanin descortina seu estilo
Tido como um juiz difícil de decifrar, ele completa um ano no STF mostrando comportamento discreto
No dia 1º de junho, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva formalizou a indicação de seu advogado pessoal à cadeira deixada pela aposentadoria de Ricardo Lewandowski no Supremo, pairavam muitas dúvidas sobre como se comportaria Cristiano Zanin ao vestir a toga da magistratura. Responsável pela defesa que tirou o petista do cárcere e reverteu condenação histórica na Lava-Jato, a única ideia do defensor conhecida do público era a do lawfare, a instrumentalização da perseguição política por meio do Judiciário, que foi a espinha dorsal de sua estratégia. Quase nada, porém, se sabia da visão dele sobre pautas de costumes, se penderia à esquerda ou à direita ou mesmo o que pensava sobre economia. Duas questões estavam postas, em especial por apoiadores de Lula: o quão governista e o quão progressista seria o futuro magistrado da mais alta Corte. Passado um ano, por meio de suas ações, o ministro deu boa parte da resposta.
Logo nas primeiras semanas na cadeira, o novo membro do STF tomou posições que o colocaram na linha de tiro dos progressistas. Zanin foi o único a ir contra a ampliação de uma decisão paradigmática do tribunal que equiparou o tratamento dado a agressões homofóbicas aos crimes raciais. Ele entendeu que a Corte não poderia incluir na decisão de 2019 os crimes contra a honra (injúria, calúnia e difamação), porque não podia extrapolar o pedido inicial e nem refazer um julgamento já estabilizado. O barulho foi grande, a ponto de seu gabinete divulgar uma nota justificando o voto. Três dias depois, a posição do magistrado no julgamento que pode descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal caiu como uma bomba. Além de dizer que o artigo 28 da Lei de Drogas é constitucional, ele defendeu um limite bem menor para diferenciar usuário e traficante: 25 gramas, enquanto a maioria propôs 60.
Esses dois momentos ampliaram a desconfiança da esquerda sobre a escolha de Lula, mas também deixaram claro que Zanin não estava disposto a guiar suas decisões pela régua ideológica. E o não alinhamento automático passou a ser, de fato, o padrão. Esse perfil ficou mais claro porque o ministro tomou decisões favoráveis a várias teses do campo progressista. A última, inclusive, foi na semana que passou. Ele rejeitou um habeas corpus que queria restabelecer a proibição de médicos fazerem abortos em casos de estupro, uma causa que mobilizou a direita e os religiosos nas redes sociais nas últimas semanas. Para isso, valeu-se do argumento técnico de que o instrumento jurídico utilizado não era adequado para questionar a decisão de Alexandre de Moraes, como queria o autor da ação. Como já virou a sua marca, não deixou na decisão nenhuma pista sobre o que pensa de aborto. Assim foi também ao contrariar outras obsessões da direita, como barrar a flexibilização do porte de armas no Paraná e normativas de cidades de Santa Catarina que dispensavam o comprovante de vacinação contra a covid-19 nas escolas (veja o quadro). Também mandou revisar editais e suspendeu ao menos dois concursos da Polícia Militar, no Rio de Janeiro e no Mato Grosso do Sul, por considerar inconstitucional a fixação de cotas restritivas para mulheres — um antigo tabu dessas corporações.
Se Zanin, portanto, não tem alinhamento ideológico e não usa esse tipo de régua em suas decisões, qual é o seu comportamento em relação a Lula? Nos bastidores, ele é visto como um ministro fiel ao presidente, embora até agora não tenha chegado a suas mãos nenhum caso que implique pessoalmente o seu ex-cliente. Mas o ministro já deu provas dessa lealdade em decisões que beneficiaram agendas do governo. A mais barulhenta delas foi a liminar que suspendeu a prorrogação da desoneração da folha de pagamento, a pedido do próprio governo. A iniciativa, depois referendada pelos colegas da Corte, causou indignação de parlamentares, sobretudo de Rodrigo Pacheco, presidente do Congresso. Zanin também ajudou a irritar Pacheco em outra oportunidade, ao votar pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, em consonância com o que defende o entorno de Lula. Além disso, deu um alívio gigantesco aos cofres da União ao abrir a divergência (que depois virou maioria) na votação da revisão da vida toda, um processo cujo desfecho poderia abrir um rombo de quase 500 bilhões de reais no INSS.
A atuação de Zanin na defesa de Lula na Lava-Jato alimentou a expectativa de que ele pudesse ser um ministro garantista em matéria penal, o que não se comprovou ainda. Essa corrente da Justiça defende, em linhas gerais, a preservação dos direitos dos réus e a utilização justa e rigorosa da lei, independentemente dos clamores da sociedade. Um dos episódios de maior repercussão na aplicação da legislação criminal — área do ex-advogado — aconteceu ainda nas primeiras semanas do recém-chegado à Corte. Zanin foi o relator de um recurso de dois homens condenados à prisão pelo furto de um macaco hidráulico, dois galões de combustível e diesel. A Defensoria Pública da União pediu a aplicação do princípio da insignificância, por dois motivos: todos os itens, juntos, valiam menos de 100 reais e o dono conseguiu recuperá-los. O ministro não se comoveu, adotou o rigor da lei e votou para manter as penas. O posicionamento alimentou o fogo cerrado dos progressistas nos primeiros dias do ministro.
Em todas as decisões, no entanto, uma coisa ficou clara: o tom técnico e claro, quase monocórdico, que ele usava na advocacia se repete na sua atuação como ministro. Na maioria das vezes, suas decisões não opinam sobre os temas julgados, não contêm frases de efeito, não há balizamentos políticos, filosóficos ou ideológicos. Nesse sentido, difere-se muito de colegas de toga como os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, que quase sempre têm um ponto de vista a defender em questões importantes no país. Ou mesmo do presidente da Casa, Luís Roberto Barroso, que fala abertamente sobre drogas, polícia, democracia e outros temas. Quando foi hostilizado por bolsonaristas ao se dirigir a um evento em Nova York, Barroso respondeu na hora. “Perdeu, mané. Não amola”, disse. Já Zanin, em janeiro de 2023, ainda advogado de Lula, foi chamado de “bandido”, “vagabundo” e sofreu ameaças de agressão física por um homem que o filmava no banheiro do aeroporto de Brasília. Não esboçou qualquer reação na hora e não fez nenhum comentário público sobre o episódio, mas levou o caso à Justiça e pediu retratação pública. Venceu o processo, e o pedido de desculpas pelo agressor foi gravado e divulgado em maio.
Fora da Corte, o ministro adota o mesmo estilo discreto em Brasília, onde circula pouco. Mantém residência em São Paulo, onde ficam a esposa Valeska, agora chefe do escritório de advocacia que era tocado pelos dois, e os três filhos. Como nos tempos de advogado, Zanin corre sozinho como ministro. Confia em poucas pessoas e não integra nenhum círculo de ministros na Corte. Embora não se deixe influenciar pela opinião pública, não faz pouco caso dela. É um dos raros que disponibilizam assiduamente a sua agenda no site do STF. Nela há encontros com advogados, identificados pelo nome e pelo número do processo em que atuam, procuradores de Justiça, membros do MP e até da classe política. Na terça 28, por exemplo, recebeu o presidente do PL, Valdemar Costa Neto. No começo do mês, o advogado-geral da União, Jorge Messias, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estiveram no gabinete para tratar do endividamento dos estados. “Ministro do Supremo não ocupa cadeira voltada a relações públicas. Mas isso não implica isolamento, mesmo porque presta contas à sociedade, aos contribuintes. Há de estar atento às críticas, evoluindo quando cabível”, diz o ministro aposentado Marco Aurélio Mello, para quem Zanin está “se saindo muito bem”.
A chegada de Zanin ao STF e os questionamentos sobre o seu perfil constituem uma relativa novidade na história da Corte. Até recentemente, pouco se falava do pendor ideológico dos ministros, postura que começou a mudar nos anos petistas. Em 2015, quando a polarização ideológica do país já se mostrava nas ruas, Edson Fachin, nomeado por Dilma Rousseff, foi acusado de ligação com o PT e o MST e alvo da mais longa sabatina da história do Senado, com quase doze horas de duração. O problema se agravou sob Bolsonaro, que via um certo esquerdismo na Corte e prometeu equilibrá-la com ministros conservadores, incluindo um “terrivelmente evangélico”. Não à toa, o tribunal entrou na mira da radicalização e virou um dos alvos preferidos do bolsonarimo. A politização da Justiça não é exclusividade brasileira. A Suprema Corte dos Estados Unidos, por exemplo, deu uma guinada conservadora com a nomeação de novos ministros por Donald Trump, a ponto de rever decisões históricas, entre elas a que reconhecia o aborto como um direito constitucional. Também limitou as restrições que os estados podiam fazer à posse de armas e liberou o uso de dinheiro público para manter escolas religiosas. O STF brasileiro teve um papel fundamental na defesa da democracia e nas decisões sobre temas nos quais o Congresso se mostrou omisso, mas paga até hoje o preço pela superexposição. O estilo de Zanin se encaixa perfeitamente no clamor de muitos críticos do STF sobre a necessidade de a Corte voltar a se comportar de forma mais discreta.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2024, edição nº 2895