O carioca já estava traumatizado com as cenas de desmonte da saúde pública do Rio — filas imensas e hospitais paralisados — quando os funcionários, sem receber havia meses, entraram em greve, promovendo passeatas diárias pela cidade. Na terça-feira 17, veio outra pancada: o prefeito Marcelo Crivella suspendeu todos os pagamentos e todas as movimentações financeiras do município até segunda ordem, podando o depósito da segunda parcela do 13º salário dos servidores, agendado para o dia anterior. Na quinta-feira 19, a prefeitura voltou atrás e revogou a decisão, mas deu tempo de ficar claro que o caixa do Rio chegou à total asfixia. A própria resolução publicada no Diário Oficial já ressaltava que o calote tinha “o objetivo de organizar as contas municipais até que os arrestos determinados pela Justiça sejam finalizados”. Isto é, Crivella não ia pagar porque não havia nada no cofre. Não se sabe de onde saiu o dinheiro para a retomada agora dos pagamentos.
A novela dos tais “arrestos” teve início no fim de novembro, quando o Tribunal Superior do Trabalho (TST) determinou o bloqueio de 325 milhões de reais, quantia que o Rio deve às organizações sociais (OSs) que tomam conta de alguns dos hospitais mais importantes da cidade. Entre idas a Brasília para pedir ajuda ao presidente Jair Bolsonaro e “piedade” ao TST e vídeos na internet em que promete que está “vencendo a crise”, Crivella tinha começado a pagar os salários de outubro de quem ganha até 3 000 reais, e alguns atendimentos foram reativados.
Na origem do acirramento da crise está um erro de cálculo. A estimativa de arrecadação apresentada pelo prefeito no orçamento de 2019 não se concretizou, e a diferença entre a previsão e os impostos efetivamente pagos resultou em um déficit de 4,7 bilhões de reais nas contas do Tesouro municipal. A expectativa era que o Brasil crescesse até 3% no ano. O Rio embarcou nela e projetou um avanço ainda maior para a cidade. “Havia certa lógica no raciocínio — quando o país está saindo de uma crise, as cidades em pior situação tendem a se recuperar mais rapidamente. Só que nenhum dos dois cenários se tornou realidade”, explica Carlos Heitor Campani, professor de finanças no Coppead/UFRJ.
O Rio de Janeiro se equilibra precariamente na corda bamba financeira desde a ressaca da Olimpíada de 2016, infectado pelas feridas da redução dos royalties do petróleo, devido à queda do preço mundial, pelo saco sem fundo de um déficit previdenciário que passa de 30 bilhões de reais e, claro, pelo tsunami dos desvios bilionários revelados pela Lava-Jato, que puseram na cadeia quase todos os caciques políticos fluminenses.
Mas Crivella contribuiu, e muito, para piorar ainda mais as contas. “A gestão dele é orientada por acordos para se manter no cargo, principalmente depois das várias tentativas de impeachment”, ressalta o economista Daniel Duque, do Instituto Mercado Popular. Faz parte desses acordos, segundo Duque, “dar cheque em branco ao orçamento das secretarias, sem controle da prefeitura”. Reprovado por 72% da população, Crivella desembolsou 145 milhões de reais em publicidade nos três anos de governo, dos quais 59 milhões só em 2019. “O prefeito peca ao não frear despesas desnecessárias com cargos comissionados e criação de subsecretarias”, aponta a vereadora Teresa Bergher (PSDB). Fazendo do ataque a melhor defesa, a prefeitura tem dirigido sua artilharia contra a imprensa, cortina de fumaça sob medida para esconder uma verdade: a cidade do Rio está à deriva.
Publicado em VEJA de 25 de dezembro de 2019, edição nº 2666