O Departamento de Estado americano é um dos órgãos mais importantes da burocracia estatal do país. Foi o primeiro a ser criado, em 1789, e tornou-se um símbolo da política externa da nação. O atual titular, o diplomata Antony Blinken, é o quarto na linha de sucessão presidencial e encarregado de missões espinhosas, como as negociações na guerra entre Israel e Hamas. No mês passado, a atenção do departamento surpreendentemente voltou-se para o Brasil. Um dos seus braços, o Centro de Engajamento Global, divulgou um extenso relatório sobre o Nova Resistência, um grupo extremista pouco conhecido por aqui, que é acusado de integrar uma rede de desinformação e propaganda pró-Rússia e atentar contra a ordem democrática na América.
A preocupação é inédita — foi a primeira vez que o centro publicou algo sobre o Brasil. O documento, de 28 páginas, classifica o Nova Resistência como organização neofascista, “quase-paramilitar” e antissemita. Segundo os Estados Unidos, o grupo tem “conexões profundas” com entidades no ecossistema de desinformação e propaganda russa e tentou recrutar brasileiros para lutar contra a Ucrânia. O relatório cita ainda a proximidade com o controverso filósofo Aleksandr Dugin, um dos gurus do presidente russo Vladimir Putin e o pai da chamada Quarta Teoria Política, uma corrente doutrinária que tem como objetivo superar o liberalismo, o comunismo e o fascismo.
Alvo dessas graves acusações, o Nova Resistência foi fundado em 2015, no Rio de Janeiro, e é uma barafunda ideológica. Tem ideais antiliberais, ultranacionalistas e antissemitas, além de repulsa a pautas LGBTQIA+ e feministas. Os militantes costumam manifestar simpatia a ditadores como Nicolás Maduro (Venezuela) e Viktor Orbán (Hungria). “É uma extrema direita particularmente exótica porque pega emprestadas algumas ideias que não são exatamente tradicionais desse espectro político”, avalia David Magalhães, coordenador do Observatório da Extrema Direita. “Ela busca sínteses entre temas e valores que são associados tanto à esquerda como à direita, a exemplo do nacionalismo, do trabalhismo e da luta anti-imperialista”, diz Francisco Thiago Vasconcelos, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência e da Radicalização da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).
O nacionalismo, o antiamericanismo e a crítica ao liberalismo aproximaram o Nova Resistência do PDT. Entre as referências brasileiras estão o ex-presidente Getúlio Vargas, líderes do Integralismo (movimento de direita dos anos 1930) e o ex-deputado Enéas Carneiro, um ícone da direita pré-bolsonarista. Membros do grupo apoiaram Ciro Gomes em 2022 e conquistaram a simpatia de Aldo Rebelo, então candidato ao Senado pelo PDT. A chegada dos radicais, porém, gerou resistência na legenda. Integrantes do coletivo de diversidade se incomodaram com a postura transfóbica e antifeminista dos novos filiados. Após denúncias, o presidente Carlos Lupi deu aval para que quase cinquenta militantes fossem expulsos, incluindo a vice-líder do movimento, Amaryllis Rezende. A pesquisadora Letícia Oliveira, que monitora a extrema direita na internet há doze anos, afirma que o grupo também se infiltrou no PCO e tentou aproximação com PT e PSOL. “A intenção de Dugin é se inserir em espaços institucionais, seja à esquerda ou à direita”, diz a especialista.
O aparato do grupo no Brasil é modesto: tem canal no YouTube com 20 000 inscritos, outro no Telegram, com 6 000 seguidores, e perfis no Instagram e no X. Também tem um site, cujo domínio está registrado em Moscou, onde publica textos pró-Rússia. Segundo os EUA, o conteúdo tem estilo, layout e narrativa de sites atribuídos a serviços russos de inteligência. Em nota, o Nova Resistência criticou o “amadorismo” do relatório e negou que apoie violência ou seja financiado por estrangeiros. Disse, ainda, que fica lisonjeado pelo “reconhecimento de nossa importância como mobilizadores e catalisadores de processos de despertar nacional e civilizacional no Brasil e na América Ibérica”.
Admiradores de figuras exóticas ou simplesmente execráveis, o grupo busca inspiração em nomes como Ted Kaczynski, o Unabomber, e no italiano Julius Evola, um dos avalizadores de Os Protocolos dos Sábios de Sião, livro que influenciou Adolf Hitler e é central para o antissemitismo. O líder Raphael Machado já negou o Holocausto (que chama de “Holoconto”) e diz que o Diário de Anne Frank é um livro de ficção. Membros da turma já se reuniram com representantes de Belarus, Coreia do Norte, Síria e Venezuela e expressaram apoio à organização terrorista Hezbollah, financiada pelo Irã. Apesar de estar no radar de um importante órgão americano, o Nova Resistência ainda não entrou na mira das autoridades brasileiras. Deveria. Basta olhar esse currículo da pesada.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867