“Quero que sejam livres”, diz presidente do Instituto Arara Azul
Neiva Guedes revela por que dedica sua vida às aves


Depois de me dedicar durante três décadas à conservação das araras-azuis, período em que a ave saiu da lista de espécies ameaçadas de extinção, ver as chamas consumirem o Pantanal é algo que dói como se fosse na minha pele. Neste ano, especialmente, o fogo está muito mais intenso e ameaça destruir ninhos e áreas de alimentação das aves. Até hoje não sei explicar direito o que é a minha relação com elas. É parecida com o amor por um filho, como a de quem ama muito o seu bicho de estimação, mas eu não quero que elas fiquem grudadas em mim, quero que sejam livres na natureza. E, sim, a minha relação é muito mais forte com as azuis — adoro todas as outras, mas as de cor cerúlea são o meu grande amor. Tenho uma filha, que nasceu depois de doze anos do meu trabalho com as araras. Costumo dizer que ela é a minha ararinha-cor-de-rosa e os irmãos são as outras aves que voam pelo céu.
Sempre tive uma conexão forte com a natureza, desde a infância, mas nunca tive um animal de estimação. Mais jovem, sonhei em fazer medicina. Sou de uma família pobre, estudei em escola pública, tenho seis irmãos, e meu pai faleceu antes que eu ingressasse na faculdade. Porém, pela grade do curso, eu não conseguiria estudar e trabalhar. Por isso, optei por biologia no período noturno. Eu achava que seria uma forma de eliminar matérias de medicina e depois concluir o curso com o qual eu sonhava. No segundo ano, me apaixonei pela graduação e decidi que, na verdade, era aquilo mesmo o que eu queria. Depois de me formar, decidi me dedicar ao Pantanal e principalmente à fauna desse bioma. Durante uma viagem para trabalho de campo, um professor apontou para uma árvore onde repousavam cerca de trinta araras-azuis. Foi amor à primeira vista. Ele explicou que a espécie estava ameaçada, e a partir dali comecei a defendê-la.
Apesar de todas as dificuldades, é muito prazeroso ver os resultados que conquistamos após trinta anos. É um alento para a alma e me faz acreditar que estou no caminho certo. Trabalho com a mesma equipe há anos, todos se sensibilizaram com a causa e defendem o que estamos fazendo. No dia a dia, pela minha personalidade, sou uma pessoa tímida. Contudo, na hora em que é necessário gritar e colocar a boca no trombone porque precisamos de ajuda, também sei fazer isso, como foi o caso da situação com o fogo em Mato Grosso. Enxergar que estamos tomando as atitudes certas é uma energia revigorante, me ajuda a perceber que nenhuma parte desse trabalho foi em vão.
Ao mesmo tempo, o atual cenário da política ambiental brasileira me faz constatar que estamos começando a ter novos problemas, o que me faz lembrar das dificuldades que enfrentei no início do projeto com as araras-azuis. Naqueles tempos, para melhorar a educação ambiental da comunidade, precisávamos trabalhar em conjunto com as rádios locais. Não havia internet, nem WhatsApp, para disseminar conteúdo confiável e de qualidade. Eram os próprios locutores, vozes conhecidas da população, que reproduziam as informações. Então, quando chegávamos a alguma fazenda para monitorar as aves, as pessoas já tinham o conhecimento que queríamos passar, sem saber que era o nosso grupo que estava por trás daquele conteúdo.
Mesmo diante dos efeitos das mudanças climáticas, das queimadas e da ação humana com o tráfico de animais, sou otimista. A união entre parceiros fez com que essa espécie aumentasse e se expandisse na região. Preocupa-me, sim, o futuro dela. Está pegando fogo na casa dela. Espero que a atual crise de saúde e ambiental mostre que é preciso alterar o nosso modo de vida. A natureza, afinal, é uma só.
Depoimento dado a Jennifer Ann Thomas
Publicado em VEJA de 9 de setembro de 2020, edição nº 2703
Essa é uma matéria exclusiva para assinantes. Se já é assinante, entre aqui. Assine para ter acesso a esse e outros conteúdos de jornalismo de qualidade.
Essa é uma matéria fechada para assinantes e não identificamos permissão de acesso na sua conta. Para tentar entrar com outro usuário, clique aqui ou adquira uma assinatura na oferta abaixo
Informação de qualidade e confiável, a apenas um clique. Assine VEJA.
Impressa + Digital
Plano completo da VEJA! Acesso ilimitado aos conteúdos exclusivos em todos formatos: revista impressa, site com notícias 24h e revista digital no app, para celular e tablet.
Colunistas que refletem o jornalismo sério e de qualidade do time VEJA.
Receba semanalmente VEJA impressa mais Acesso imediato às edições digitais no App.
Digital
Plano ilimitado para você que gosta de acompanhar diariamente os conteúdos exclusivos de VEJA no site, com notícias 24h e ter acesso a edição digital no app, para celular e tablet.
Colunistas que refletem o jornalismo sério e de qualidade do time VEJA.
Edições da Veja liberadas no App de maneira imediata.