Ícone do modernismo brasileiro, Tarsila do Amaral, que morreu aos 86 anos, em 1973, ficou conhecida por suas telas tomadas de cores fortes e traços curvilíneos que beberam da fonte das vanguardas europeias. Foi nos anos 1920 que a artista rompeu com a pintura tradicional e inaugurou a profícua fase antropofágica, recheada de elementos oníricos, doses de surrealismo e profunda brasilidade. Neste período, ela produziu o célebre Abaporu, hoje nas paredes do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, o Malba. Embora tenham sido as pinceladas a óleo que a consagraram, o desenho sempre se fez presente em sua trajetória.
Agora, uma bela série de quinze trabalhos em nanquim sobre papel, dessa efervescente etapa de sua carreira, se encontra no centro de um imbróglio que foi parar na Justiça e faz ferver a candente discussão sobre a autenticidade de obras de arte. Em caso inédito no país, o escritor e tradutor Alípio Correia, herdeiro dos desenhos que retratam a paisagem litorânea brasileira, briga para provar nos tribunais que a análise conduzida por algumas das maiores especialistas na obra de Tarsila — na qual lançam dúvidas sobre a sua autoria — está equivocada. “Além das provas que juntei em mais de uma década de pesquisa, estou convencido de que o critério de avaliação não foi científico, mas de gosto pessoal”, dispara Correia.
De acordo com o processo, que corre na 13ª Vara Cível de São Paulo, o conjunto de desenhos está avaliado em 1 milhão de reais, mas pode alcançar valor mais alto. Há alguns anos, só um estudo de A Negra, da mesma década de 1920, foi vendido por montante semelhante. Entre suas mais apreciadas pinturas, A Lua, arrematada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, atingiu cifra na casa dos 20 milhões de dólares. Sem uma certificação de legitimidade, porém, o patamar instantaneamente despenca.
A saga pelo reconhecimento das ilustrações começou em 2011, quando Correia herdou o espólio literário de Frederico Ozanam de Barros, biógrafo do poeta modernista Guilherme de Almeida. Ao vasculhar a vasta papelada, ele bateu os olhos na coleção de desenhos, sem sinal de assinatura. Mas havia, no verso de uma das imagens, uma pista que poderia levar ao autor — a frase “Viagem pela costa do Brasil, do Rio Grande do Sul ao Ceará, em 1925”. Ao longo de um minucioso mergulho, descobriu-se que os desenhos povoados de barquinhos, coqueiros, ondas do mar e o Pão de Açúcar ilustrariam um livro do poeta, amigo de Tarsila, que acabou nunca saindo.
Submetida à comissão do catálogo raisonné (publicação que certifica e elenca as obras de um artista) da celebrada modernista, a série de desenhos não foi considerada falsa, mas também não obteve o tão almejado selo de autenticidade. Sem um parecer unânime, ingressou na lista de peças sobre as quais pairam incertezas, da qual Correia tenta retirá-la. Na ação, além da editora do livro, são réus duas das maiores autoridades em Tarsila, integrantes do comitê avaliador — Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros.
Documentos anexados ao processo sugerem que Aracy não teria apreço por obras de “fundo de gaveta”, o que seria o caso dos desenhos e, por isso, votou contra. Já Regina, segundo a acusação, chegou a atestar informalmente sua veracidade e até intermediou uma possível venda da coleção, o que ela nega. “Essa ação, além de questionar um corpo técnico e isento, individualiza a decisão de uma comissão”, argumenta Fernando Lamenza, advogado das pesquisadoras. Do outro lado do ringue, Mario Solimene Filho, que defende Correia, sustenta a solidez das provas, entre as quais análises independentes de laboratórios da USP. “Nossa intenção é, com fatos, obter uma decisão judicial que substitua o parecer dessa comissão”, explica ele, que ainda pleiteia uma indenização de 100 000 reais por danos morais.
Estudos técnicos, laudos de especialistas, pareceres de instituições renomadas — tudo isso faz parte do complexo processo de atribuição da autoria de uma obra. Ainda assim, nem sempre o veredicto é unânime, dado que embute um grau de subjetividade. A mais emblemática contenda em torno de uma tela diz respeito a Salvator Mundi, atribuída a Leonardo da Vinci (1452-1519), comprada em leilão pelo mandachuva da Arábia Saudita Mohammed bin Salman, o MBS, em 2017. Bateu valor recorde de 450 milhões de dólares, mas até hoje, mesmo depois de gente da mais alta patente no universo das artes ter cravado sua veracidade (incluindo o Museu do Louvre), é alvo de dúvidas de uma ala de especialistas igualmente séria. Os caracóis do cabelo de Cristo, a anatomia da mão que segura uma esfera transparente — esses são detalhes que perturbam quem acha não estar diante de um verdadeiro Leonardo.
No Brasil, não raro debates dessa natureza sacodem o universo das galerias. “Num país onde não há uma legislação específica e sabe-se da existência de um enorme comércio de obras falsas, a confecção do catálogo raisonné é a forma mais segura para proteger o legado do artista e o próprio comprador”, observa o marchand Max Perlingeiro, há cinquenta anos na ativa. Mas, como é caro e demorado elaborar o catálogo, apenas um seletíssimo grupo de artistas nacionais tem um — entre eles Candido Portinari, Alfredo Volpi e Vik Muniz. Responsável pela administração do espólio de Tarsila, sua sobrinha-neta homônima, conhecida como Tarsilinha, não quis se manifestar sobre o caso e apenas comentou a VEJA: “O catálogo raisonné é algo vivo e sua comissão, soberana. Agora, se aparecem evidências de que uma ou outra obra é legítima, nada impede que sejam revistas”. Como se vê, o renhido duelo é obra para lá de inacabada.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866