Com uma câmera acoplada ao ombro direito, o delegado Carlos Alberto da Cunha, 43 anos, dá instruções aos subordinados em uma operação para prender “Jagunço”, suspeito de ser matador do PCC, o maior grupo criminoso do país. Em seguida, vira-se para explicar a seu público como vai se desenrolar a diligência coordenada por ele. O criminoso, com o rosto borrado para driblar a Lei do Abuso de Autoridade, é preso no, digamos, capítulo final. Todo esse espetáculo, produzido com iluminação e câmeras profissionais, drones, roteiro e edição, está disponível no canal de Da Cunha no YouTube, onde a série de três episódios acumula quase 30 milhões de visualizações. O canal, que tem 3,6 milhões de inscritos e rende a seu idealizador, com oito anúncios a cada vídeo, até 350 000 reais mensais, levanta a questão: pode um servidor público se aproveitar dessa forma de seu emprego, exibindo bastidores de operações e fazendo uso de imagens de policiais que portam armas do arsenal do estado e se deslocam em viaturas da Secretaria de Segurança?
Da Cunha pediu afastamento do cargo de delegado em junho, depois de uma live vociferando contra os colegas mais velhos — “ratos e raposonas” da corporação, na sua definição —, mas continua fazendo e acontecendo na rede. Em postagem recente, divulgou foto armado e sozinho, em pose heroica, na Cracolândia paulistana. Ele está sendo investigado pelo Ministério Público estadual por improbidade administrativa, “ostentando uniforme e distintivo de forma incompatível com a envergadura do cargo e promovendo a empresa privada da qual é sócio”. Filiado ao MDB, planeja, segundo pessoas próximas, se candidatar a deputado federal.
Operações policiais reais como entretenimento se popularizaram com Cops, a série americana que permaneceu no ar por mais de trinta anos, até ser abatida, no ano passado, pelo clamor das denúncias de brutalidade policial nos Estados Unidos. A principal diferença de Cops para os shows de agora é que estes são obra direta de agentes da polícia loucos para ficar famosos. Existem cerca de 100 canais de policiais brasileiros no YouTube e os cinco mais vistos ultrapassam 1 bilhão de visualizações. Em diversos casos, a fama de influenciador se transmutou em carreira política — caso do vereador Gabriel Monteiro (PSD), terceiro mais votado do Rio de Janeiro, e do deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ). Mesmo tendo saído da PM, Monteiro segue postando vídeos supostamente em ação — em setembro, publicou um “prendendo em flagrante” um homem que teria agredido mulheres. Calcula-se que a atividade artística lhe renda até 1 milhão de reais em bons meses. Silveira, preso por ameaçar ministros do STF, também se elegeu montado na popularidade que a internet proporcionou.
O canal Polícia em Ação, com mais de 130 milhões de visualizações, mostra a rotina do PM Allyson Monteiro, 29 anos, em Colatina, Espírito Santo. Entre perseguições, abordagens e prisões, pipocam na tela anúncios de redes de supermercados e formas milagrosas de ganhar 1 milhão de reais. Já o Soldado Marcelo, policial militar de Campinas, no interior de São Paulo, e piloto de motocross, investe em perseguições alucinantes filmadas em vídeo, que já lhe renderam mais de 90 milhões de exibições. “Esses policiais usam o aparato do Estado para ganho pessoal, aproveitando-se de um vácuo legal”, critica Rafael Alcadipani, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Policiais mundo afora postam suas aventuras nas redes sociais (afinal, quem não?), mas dentro de um conjunto de regras. No Reino Unido, o conteúdo dos vídeos tem de ser pré-aprovado e seguir um rígido código de conduta. Nos Estados Unidos, cada estado tem suas normas, mas policiais que se excedem são punidos e até expulsos. “Quando agentes da lei veiculam seus próprios vídeos, a separação entre programa de TV e realidade se dilui, o que os torna mais assustadores e menos eficazes. Transmite-se uma pequena porção do que realmente ocorreu e sob uma perspectiva particular e limitada”, disse a VEJA o sociólogo americano Barry Glassner, autor de Cultura do Medo. Procurada, a Polícia Militar do Rio de Janeiro informou que “desenvolve estudo para produzir norma específica para o assunto”. O Conselho Nacional de Chefes de Polícia Civil, por sua vez, pretende levar a seu próximo encontro, em dezembro, uma proposta de limites para exposição em páginas pessoais. Enquanto isso, os Rambos da internet seguem ganhando fama — e lucrando.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756