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Poder, territórios e influência política: como o crime se espalha no país

O incêndio de dezenas de ônibus pela bandidagem do Rio é sinal evidente de que a falta de segurança pública passou dos limites e exige imediata reação

Por Maiá Menezes, Ricardo Ferraz, Lucas Mathias Atualizado em 4 jun 2024, 10h14 - Publicado em 27 out 2023, 06h00
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  • A sequência de atos de terror seguiu um roteiro conhecido, embora de proporções inusitadas. Em questão de horas, bandidos armados renderam ônibus que circulavam pelo Rio de Janeiro, espalharam gasolina no chão e atearam fogo nos veículos. Os passageiros, apavorados, corriam para as saídas. A cena, concentrada principalmente na Zona Oeste, se repetiria 35 vezes na tarde de segunda-feira 23. Foi o maior número de veículos incendiados simultaneamente na cidade — entrou na conta também um trem metropolitano. A Avenida Brasil, um dos mais importantes eixos da capital fluminense, principal ponto de acesso para quem chega de São Paulo, teve o trânsito interrompido. Aulas e serviços de transporte coletivo foram suspensos, prejudicando a volta para casa de ao menos 180 000 moradores, assustados, com medo. No total, os prejuízos somam mais de 35 milhões de reais. “Parecia a Faixa de Gaza”, disse o presidente Lula.

    A comparação soa um tanto descabida, ante as atrocidades em curso no Oriente Médio, como legítima resposta de Israel à chacina promovida pelo Hamas, mas para a população que sente na pele o agravamento da crise na segurança pública, no Rio e em boa parte do país, as bolas de fogo são, sim, imagens de uma guerra que se arrasta há décadas, atiçada pela histórica incapacidade do Estado de lidar com a violência. No campo de batalha brasileiro, inocentes servem de bucha de canhão nos confrontos de bandidos com bandidos e de bandidos com a polícia, em duelo que acumula baixas de cidadãos que desejam apenas viver, pouco mais do que isso.

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    MAIS DO MESMO - Castro e Dino: novas reuniões, velhas soluções (Ernesto Carrico/Gov. RJ//)

    Segundo o Anuário da Segurança Pública, 47 398 civis foram assassinados no país no ano passado. Quando a lupa aponta para as áreas nas mãos da bandidagem, a mortandade explode. Na cidade do Rio, as mortes violentas aumentaram 15% neste ano. Na Bahia, estado que ocupa o topo do ranking de sangue, foram registradas 6 659 mortes violentas em 2022 — a maioria executada pela polícia —, sendo 159 delas em 39 chacinas contabilizadas pelo Instituto Fogo Cruzado. Na Região Norte, as vítimas se multiplicaram nos esta­dos que fazem fronteira com países produtores de drogas e, na falta de repressão, a ação dos criminosos se diversificou para outras atividades ilegais na floresta, como o garimpo não autorizado, a grilagem de terra e a venda de madeira sem certificação. “Os grupos armados atuam em toda parte”, diz Cecília Olliveira, diretora do instituto. “Não dá para esperar que uma polícia local resolva essa situação. O debate tem de ser nacionalizado.”

    Os ataques aos ônibus cariocas foram, ao que tudo indica, uma espécie de vingança contra a operação da Polícia Civil em que morreu o miliciano Matheus Resende, o Faustão, número 2 do Bonde do Zinho, a maior organização criminosa do Rio de Janeiro. Ele seria, inclusive, o elo da milícia com o narcotráfico — um casamento de interesse entre quadrilhas que não se toleravam no passado e que hoje trocam alianças, elevando o poder da bandidagem a novo patamar. As cenas de terror na mais conhecida paisagem brasileira lá fora foram o ápice (até agora) de uma onda de violência que levou o governador Cláudio Castro a acertar com o Ministério da Justiça envio de tropas da Força Nacional e o reforço das operações da Polícia Federal na capital — eternizando o jogo de empurra em que o estado, responsável pela segurança, apela para a ajuda do governo federal, que a presta de forma limitada por não querer pôr a mão no vespeiro.

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    Rio
    REFORÇO - A Força Nacional no Rio: em geral, ajuda do governo federal tem pouco resultado (Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

    No caldeirão de não solução da crise de segurança no Rio misturam-se ainda teias de interesses mais ou menos espúrios, com ramificações na própria polícia e nos poderes Legislativo e Judiciário, o que dificulta ainda mais o já precário combate ao crime. Quando Castro se reuniu com o ministro da Justiça, Flávio Dino, no Palácio Guanabara para discutir detalhes da atuação do contingente federal, que já começou a chegar e deve se restringir ao patrulhamento das estradas e fronteiras estaduais, sentava-se à mesa José Renato Torres, então secretário da Polícia Civil, que entrou mudo e saiu calado — minutos antes, ele havia pedido demissão ao ser informado pelo governador de que teria de ceder diversos cargos, o dele inclusive, aos deputados que comandam a Assembleia Legislativa. Para seu lugar foi nomeado Marcus Vinícius Amim, ex-delegado titular da Delegacia de Repressão a Entorpecentes que comandou, há dois anos, uma invasão na favela do Jacarezinho com saldo de 28 mortos. Amim é adepto da linha dura, que reforça em comentários postados nas redes sociais — onde exibe seus músculos vestindo trajes exíguos. Recentemente ele anotou: “A polícia mata vagabundo que atira em polícia, e vai continuar matando”.

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    NOVOS TEMPOS - Centro de treinamento do tráfico: o crime sofisticado (//Reprodução)
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    Empenhado em dividir responsabilidades, o governador, depois do incêndio dos ônibus, foi a Brasília pedir ao ministro da Defesa, José Múcio, o envio de tropas das Forças Armadas para o Rio — uma iniciativa comprovadamente inócua, à qual se apelou mais de 35 vezes desde a redemocratização, sendo a mais recente em 2018, que rendeu onze meses de intervenção a um custo de 1 bilhão de reais com resultado zero. Em meio à elevação da temperatura, o presidente Lula voltou a mencionar a criação de um Ministério da Segurança Pública, desmembrado da Justiça, mas a ideia encontra resistência de Dino, que não quer ver seu poder reduzido. Há ainda uma ala do PT para a qual a responsabilidade seria dos estados e um ministério exclusivo, além de ter ação limitada, abriria um flanco para críticas da direita, que acusa a legenda de ser leniente com a criminalidade. “O governo poderia, por exemplo, trabalhar na implantação do Sistema Único de Segurança Pública. O problema é que isso não dá voto”, diz Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

    DUROU POUCO - UPP carioca: programa começou bem, mas se perdeu por falta de planejamento
    DUROU POUCO - UPP carioca: programa começou bem, mas se perdeu por falta de planejamento (Gabriel de Paiva/Agência O Globo/.)

    Desde que o crime organizado passou a se tornar um problema das grandes cidades, no fim dos anos 1980, a resposta dos governos, quando existe, limita-se a matar ou prender os chefes das facções criminosas, acreditando que o corte das cabeças das quadrilhas leva ao seu desmantelamento. Ledo engano. Além de o comando ser rapidamente substituído — o lugar de Faustão, por exemplo, já foi preenchido por um certo Pipito —, bandidos de alta patente passaram a dominar os presídios, dando origem a diversas quadrilhas. A maior delas, o Primeiro Comando da Capital, em São Paulo, se transformou em uma organização internacional que controla as principais rotas do tráfico no país. “Cada vez que se elimina um líder do crime organizado, abre-se uma disputa interna e violenta pela sucessão, mas isso não quebra os elos que mobilizam essas organizações”, diz Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos, da UFF.

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    Até o início do século XX, os bandos criminosos tinham a atuação circunscrita às favelas e ao varejo de cocaína e maconha. A chegada das milícias, no Rio de Janeiro, levou à exploração de novos negócios, como o transporte clandestino, a construção de imóveis em áreas irregulares e o serviço pirata de internet, ampliando a penetração do crime na sociedade. Expandindo-se rapidamente, elas fazem o que bem entendem em mais da metade do território da capital fluminense, espalhando medo e praticando a barbárie. “As milícias sofisticaram o crime”, avalia Hirata. Seguindo essa trilha, o tráfico montou até centros de treinamento de combate para seus “soldados”. Um deles, aliás, foi filmado por drones da polícia no Complexo da Maré.

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    EXPANSÃO - Garimpo flagrado na Amazônia: quadrilhas assumem o controle de atividades ilegais na Região Norte (Alan Chaves/AFP)

    A experiência que chegou mais perto de uma solução para a criminalidade no Rio foram as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) implantadas durante o governo de Sérgio Cabral. Enquanto bases de policiamento comunitário davam proteção aos moradores, projetos de urbanização e programas voltados para educação, prática esportiva e saúde mobilizavam a população a ocupar seu espaço, em desafio ao poder dos traficantes. A iniciativa degringolou quando se ampliou indiscriminadamente, sem planejamento adequado. “Os policiais não conseguiram manter o modelo planejado e houve denúncias de corrupção e abusos”, diz Cecília Olliveira, do Fogo Cruzado. José Mariano Beltrame, ex-secretário de Segurança que dirigiu o programa da UPP no passado, esteve em contato com o governo federal para debater a crise atual.

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    CAMPEÃO - Enterro de vítimas de chacina na Bahia: líder do ranking de sangue (//Reprodução)

    A experiência internacional mostra que, havendo seriedade e constância, é possível retomar áreas dominadas e golpear o crime organizado. Após padecer nas mãos do megatraficante Pablo Escobar, morto em 1993, a cidade de Medellín, na Colômbia, renasceu com a implantação de programas sociais e a ação de uma polícia submetida a um rigoroso processo de capacitação, assessorada por investimentos em inteligência. Na Nova York dos anos 1990, o prefeito Rudy Giuliani (hoje um triste fantoche trumpista em franca decadência) neutralizou um império de gangues punindo todos os crimes, mesmo os mais corriqueiros (a célebre “tolerância zero”) e sendo implacável com policiais enredados na corrupção. No Rio, e nos demais focos de violência do Brasil, está mais do que provado que velhas políticas não produzem novos resultados. E assim vamos perdendo a batalha. Já passou da hora de mudar.

    Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865

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