Há dois anos o Supremo Tribunal Federal (STF) investiga as ações de uma suposta milícia digital que atuaria de forma organizada com o objetivo de minar as instituições democráticas. O grupo seria formado por aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro e alimentaria uma rede de desinformação, espalhando boatos, notícias falsas e incentivando ataques a políticos, juízes e adversários através das redes sociais. O inquérito é sigiloso e pouco se sabe sobre o que já foi efetivamente descoberto. Identificados, alguns dos acusados tiveram a prisão preventiva decretada, enquanto outros fugiram do Brasil para escapar da cadeia. Uma das suspeitas em apuração é de que a depredação das sedes do STF, do Congresso e do Palácio do Planalto nos atos do dia 8 de janeiro foi planejada e incentivada por essa milícia, que, além de tudo, pode ter sido usada como canal para financiar a baderna — uma linha de apuração que está enredando novos personagens ao caso.
Entre os acusados está o cantor gospel Salomão Vieira, que teve a prisão decretada pelo ministro Alexandre de Moraes. Apontado como um dos organizadores dos ataques do dia 8 de janeiro, ele fugiu do país logo depois das manifestações. No mês passado, a Interpol, a pedido da Polícia Federal, realizou uma operação no Paraguai, onde o cantor estaria escondido. Prendeu três manifestantes que também eram procurados, mas não encontrou Vieira. O cantor pedia doações que eram usadas para manter os acampamentos em frente aos quartéis do Exército, especialmente o de Brasília, de onde, segundo os investigadores, partiram os manifestantes que promoveram a baderna. Vieira, que continua foragido a exemplo de outros acusados como os blogueiros Oswaldo Eustáquio e Allan dos Santos, publicou em suas redes sociais comprovantes de compra de suprimentos. A PF trabalha com a informação de que, nessa época, ele movimentou 2 milhões de reais em suas contas e, por isso, passou a investigar também os supostos doadores.
Dois dos suspeitos são figuras conhecidas: Rivaldo, ex-jogador da seleção brasileira de futebol, e Rafaella Santos, irmã do atacante Neymar. No mês passado, os investigadores responsáveis pela Operação Lesa Pátria ouviram um dos integrantes das tais milícias digitais. Ele contou que conviveu por algum tempo com Salomão Vieira no Paraguai após os ataques de 8 de janeiro (ambos estavam fugindo da polícia). Na ocasião, o cantor teria lhe confidenciado a identidade de alguns de seus doadores. Rivaldo, segundo Vieira, teria colaborado com 50 mil reais. Em princípio, o jogador não cometeu crime algum, porque a doação, até que se prove o contrário, não foi feita com o objetivo de financiar a invasão e a depredação dos prédios públicos. Eleito o melhor do mundo em 1999, Rivaldo foi um dos muitos atletas que se engajaram na campanha de Jair Bolsonaro. Depois da derrota do ex-presidente, o pentacampeão comparou o resultado da eleição à eliminação do Brasil na Copa de 1998. “Hoje tive uma sensação de tristeza um pouco parecida como a final da copa do 1998 quando perdi de 3 x 0 para a França”, lamentou em uma rede social, acrescentando, na sequência, que cultivava a esperança de que o desfecho do processo eleitoral ainda poderia ser outro: “A luta continua e não vamos parar pois muita coisa ainda vai acontecer até o 31/12/2022”, escreveu o ex-jogador.
Diferentemente do irmão, Rafaella tem um perfil mais reservado quando o assunto é política. Neymar chegou a gravar vídeos de apoio que foram usados na campanha do ex-presidente. Uma das poucas manifestações públicas de Rafaella também ocorreu depois da derrota do ex-capitão. “Sou Bolsonaro, sim. Não é segredo para ninguém minha opção nestas eleições. Mas democraticamente sempre respeitei a todos que optaram pelo Lula”, escreveu. Na conversa com o delegado, o integrante das milícias disse que ela também teria feito doações. VEJA procurou os três personagens envolvidos nesse novo capítulo do 8 de Janeiro. O advogado Érico Della Gatta, que representa Salomão Vieira, informou que o seu cliente é inocente e que não pode falar sobre detalhes do caso, que está sob segredo de Justiça. Em nota, a assessoria de Rafaella informou que ela não conhece nem fez qualquer repasse de recursos a Salomão e que o envolvimento de seu nome é leviandade ou fraude. Já Rivaldo, também através de seu advogado, confirmou que fez duas doações em novembro do ano passado a pedido do cantor gospel, mas que, somadas, não ultrapassam 2 mil reais. Os repasses, segundo ele, tinham a finalidade de comprar mantimentos para “pessoas carentes da igreja”. A PF agora quer saber como esse dinheiro foi parar nos acampamentos golpistas.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867