Nasci com a bola nos pés. Ou melhor, nas mãos. Desde pequeno, jogo como goleiro e isso é o que mais me traz alegria. Minha família sempre me incentivou, dando o exemplo. Meu pai foi goleiro, assim como meu irmão mais velho. Na comunidade onde moro, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, o futebol preenche nossos dias. Já passei por quatro times profissionais juvenis, até chegar ao Vila Maria Helena. E justamente por essa equipe eu tinha acabado de vencer um campeonato em Minas Gerais, entre 32 clubes, pura zebra. Passamos três anos batendo na trave. Dessa vez, levei inclusive o título de melhor goleiro do campeonato. Por isso, naquele trágico domingo, 29 de janeiro, o clima era de celebração no momento em que o ônibus que nos levava de volta para casa despencou em uma ribanceira, tirando a vida de cinco amigos e me deixando uma ferida na cabeça. Dias depois do acidente, ela ainda dói.
O ambiente antes da partida para o Rio de Janeiro era o melhor possível. O fim da competição havia atrasado algumas horas e não saímos às 14h, como combinado, mas lá pelas 20h. Acomodados em nossos assentos, tiramos fotos e enviamos aos nossos pais, sem ter ideia do que nos aguardava. Exaustos, caímos no sono. E aí, de repente, deu-se o inesperado. Me recordo de despertar com o forte impacto do ônibus na lateral da pista, em algum ponto de Além Paraíba, no Sul de Minas. Tudo aconteceu em uma questão de segundos. O motorista perdeu o controle da direção e despencamos 10 metros ribanceira abaixo. Tentei me segurar no banco. Não deu. Fui arremessado e bati com a lateral esquerda da cabeça no teto. Os vidros se espatifaram e vi os estilhaços voando na minha direção, como em câmera lenta. Parecia um filme de horror.
Os instantes seguintes foram de tentar salvar quem estava por perto. Só pensava nisso: onde estão meus amigos? Eles vão sobreviver? O ônibus estava completamente virado. Olhei para o lado e vi um de meus colegas, ainda com o celular na mão. Ele acendeu a lanterna e começamos a procurar uma saída. Achamos, enfim, uma janela no fundo do veículo. Não sei como passei por aquele buraco — deveria ter uns 40 centímetros. Eu meço 1,80 metro. Estávamos no meio de uma mata fechada, escura. Tentamos resgatar pessoas ainda presas nas ferragens, em vão. De tão machucado e assustado, não tinha forças. Conseguimos sair de lá e achar a estrada. Ficamos sentados no chão, mudos, chocados. Mal conseguia enxergar com tanto sangue escorrendo pelo meu rosto. É estranha essa hora em que você sente na pele que é tão frágil.
Eram 38 pessoas a bordo. Morreram quatro e vinte foram parar no hospital em Belo Horizonte, para onde me conduziram em uma ambulância. Felizmente, os que se encontravam em estado grave melhoraram e foram liberados. Eu tomei dez pontos na cabeça, fiquei com o corpo todo machucado, mas estava bem para ir para casa no dia seguinte. Meu braço tinha um corte longo, meu joelho latejava e aí me veio o desespero: será que nunca mais vou poder jogar? Minha família finalmente chegou e chorei muito. Tive medo de nunca mais vê-los. Saí do hospital e fui direto prestar depoimento. O motorista disse que foi fechado por uma carreta, mas quem estava acordado conta que não viu essa cena. Só lembro que ele dirigia rápido. Talvez tenha dormido. Aquelas imagens ficam me assombrando. Estou fazendo terapia para lidar com o trauma e cuidando de mim, para voltar ao campo. Quero jogar por mim e pelos amigos que eu perdi. Fui ao enterro deles, com a cabeça ainda enfaixada e dor no corpo todo. A pior delas, porém, está no coração. Éramos como uma família.
Cauã da Silva em depoimento dado a Gustavo Silva
Publicado em VEJA de 15 de fevereiro de 2023, edição nº 2828