Sob temperaturas que ultrapassam os 50 graus, Manoel Garcia da Silva, 37 anos, chefe da Brigada Alto Pantanal, mantida pela ONG Instituto Homem Pantaneiro, enfrenta há semanas uma batalha inglória. Silva e sua equipe lutam para salvar das chamas o Corredor das Onças-Pintadas, nos arredores da remota Serra do Amolar, em Mato Grosso do Sul, região de riquíssima biodiversidade (3 500 espécies de animais) que agora se vê cortada por uma muralha de chamas. “A gente combate até o limite da exaustão”, desabafou o brigadista a VEJA. “Podemos demorar dois dias inteiros para apagar um único foco, e há centenas deles, em risco de vida.”
Garcia faz parte de um esforço concentrado, sem pausa e interminável, para conter os incêndios que há noventa dias devastam o Pantanal — 500 homens e mulheres, junto com contingentes das Forças Armadas, empenhados em uma luta sem trégua que só na última semana envolveu a identificação de mais de 3 200 novos pontos de combustão. Atormentado por uma combinação de infortúnios, que vão de inclemência climática a má gestão no uso da terra, passando pela negligência de todas as esferas de governo, o Pantanal queima em velocidade sem precedentes, correndo o risco de, no futuro, sumir do mapa.
É até irônico que, nas últimas semanas, o epicentro dos extremos climáticos que ameaçam o mundo com o incêndio de vastas extensões se situe justamente na maior planície alagada do planeta. Espalhado por 210 000 quilômetros quadrados nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no Brasil, além de partes da Bolívia e do Paraguai, o Pantanal sempre seca e depois incendeia nesta época do ano. A propagação do fogo, contudo, se acelerou nas últimas temporadas, produzindo imagens dilacerantes, que agora atingem seu apogeu. O desastre se deve, em parte, à fúria da natureza impactada pelas mudanças climáticas. Esturricado por uma estiagem que já dura seis anos e que reduziu a superfície inundada em 60%, assolado por ondas de calor intensificadas pelo efeito estufa e, nestes meses, ainda alvejado pelo fenômeno El Niño, que aquece o oceano e altera a umidade e o calor nos trópicos, o bioma viu sua vegetação converter-se em palha altamente inflamável.
Resultado: antes mesmo do início da temporada de queimadas, em julho, o ecossistema estava sitiado por labaredas que superam os 3 metros de altura, avançam ao ritmo de 3 quilômetros por hora e já calcinaram área equivalente a quatro municípios de São Paulo — 1 500% maior do que a afetada no mesmo período do ano passado (veja o quadro). Nesse compasso, os incêndios vão superar com folga a tragédia de 2020, até então a pior da história, quando 30% do bioma virou cinza e 17 milhões de animais morreram. “As análises previam um aquecimento de até 2 graus na média da região até 2060. Isso já está acontecendo e é assustador”, diz Christian Berlinck, biólogo que coordena a Prevenção e Combate a Incêndios do Instituto Chico Mendes (ICMBio).
Na atual temporada de fogo, nenhum ponto sofre tanto com o desastre quanto Corumbá, município a 420 quilômetros de Campo Grande onde se localizam 85% dos focos. Desde 4 de junho, os 112 000 habitantes convivem com uma nuvem de fumaça proveniente de labaredas que viralizaram em um vídeo recente, por sua proximidade com uma festa de São João. Viúva e mãe de oito filhos, Virginia Paz, 53, converteu-se em voluntária para tentar apagar as chamas. “Não consigo dormir com os gritos das aves. Elas voam desesperadas, não têm onde pousar”, lamenta.
Com o horizonte tomado pelas chamas, moradores fazem o que podem para tentar escapar da fuligem carregada de monóxido de carbono, um gás tóxico que afeta principalmente crianças e idosos, podendo desencadear problemas respiratórios e cardiovasculares. “O jeito é se trancar em casa. Mas a fumaça penetra por qualquer fresta”, diz a auxiliar administrativa Sildemara Dias, 45, que, assim como os filhos Joabe, 13, e Emanuel, 17, tem crises de bronquite e falta de ar. A nuvem de partículas produzida pelos megaincêndios viaja centenas de quilômetros, alcançando Paraná, São Paulo e Santa Catarina, e, segundo os meteorologistas, deve piorar nos próximos dias devido à mudança na direção do vento. Um plano de contingência prevê o fechamento dos aeroportos de Campo Grande e Corumbá.
Além de lançar toneladas de carbono na atmosfera e, portanto, acelerar o efeito estufa, os incêndios afetam toda a economia pantaneira. Base do desenvolvimento sustentável da região, o ecoturismo se vê encurralado pelo desastre — na estrada Parque Pantanal, que fica a 60 quilômetros de Corumbá e passa por dentro da mata, as pousadas que trabalham com pesca esportiva e turismo ecológico estão vazias. “Passo o dia mandando fotos para meus clientes, para comprovar que não há fogo aqui. Mesmo assim, hoje só tenho dezoito dos esperados quarenta hóspedes para esta época do ano”, diz Rosana Pedraza, dona do hotel Jungle Lodge. “Pelo amor de Deus, não vamos deixar o Pantanal acabar”, clama, revoltada. É grito necessário. Sem assistência adequada, os proprietários organizam brigadas e sistemas de vigilância, como fez Rita Jurgielewicz, do Hotel Fazenda Baía das Pedras, em Aquidauana, que depois da tragédia de 2020 se juntou a outros 22 hoteleiros para formar uma frente anti-incêndios. “Compramos maquinário e fizemos treinamento com os funcionários”, diz ela.
Combater as chamas no Pantanal é tarefa de altíssima complexidade, sem paralelo com nenhum outro tipo de vegetação. Na Amazônia, no Cerrado e na Mata Atlântica, o fogo se alastra pela copa das árvores, sendo possível visualizar as labaredas a quilômetros de distância. No Pantanal, a propagação se dá também no subsolo, de forma praticamente invisível, quando as chamas atingem uma espessa camada de vegetação em decomposição, depositada ali ao longo de milênios pelas enchentes. Essa massa vegetal, chamada de turfa, é úmida e no passado servia para conter o avanço do fogo. Agora, porém, está ressecada por força de uma ação a quilômetros de distância: o desmate da Amazônia. As chuvas que caem no Pantanal têm origem na floresta. A mata tropical retira água do solo e emite vapor por suas folhas, que sobe e forma canais de umidade na atmosfera, os poeticamente denominados rios voadores, levados por correntes de ar até a região pantaneira, onde desabam na forma de chuvas. O desmatamento enfraquece os canais, reduz a precipitação e seca o solo. “Está tudo conectado. A derrubada da Amazônia afeta em cheio o Pantanal e está deixando todo o Brasil mais quente e seco”, diz José Marengo, climatologista do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais.
O regime hídrico pantaneiro sofre ainda com a destruição de outro bioma nacional, o Cerrado, uma região elevada onde nascem centenas de rios — daí o apelido de caixa-d’água do Brasil. Também lá, a ação do homem contribui para atiçar as chamas no Pantanal. Em quatro décadas, o Centro-Oeste converteu-se em uma potência agrícola, desmatando mais de 110 milhões de hectares de mata, metade do total, para dar lugar ao cultivo extensivo sobretudo de soja, milho e cana-de-açúcar. Assim, sem a devida fiscalização, os rios pantaneiros que nascem no Cerrado minguaram. De acordo com o MapBiomas, rede que envolve universidades, ONGs e empresas de tecnologia, o Pantanal perdeu 61% de sua superfície de água entre 1985 e 2023, em catástrofe de consequências imprevisíveis. “Os impactos são enormes. A fauna e a flora não estão adaptadas a essa nova realidade e correm o risco de desaparecer no futuro”, alerta Lincoln Alves, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Principal responsável pela escalada dos incêndios, a agropecuária sofre, ela própria, com as perdas impostas pelo fogo sem controle — calcula-se um prejuízo de 17 milhões de reais em 2024. Ao contrário dos incêndios florestais que acontecem na Europa e nos Estados Unidos, em sua maioria resultado de fenômenos naturais, como raios, no Brasil o pavio está quase sempre localizado nas queimadas realizadas para limpar terreno. No Pantanal, até décadas atrás, essa prática ficava restrita a extensões curtas. Mas, diante do novo normal climático, o fogo foge ao controle rapidamente, espalhando-se em velocidade exponencial. Essa irresponsabilidade assume tons ainda mais dramáticos quando se considera que, na região pantaneira, 95% do território é privado e de dificílimo monitoramento.
Impedir a ocorrência de incêndios é impossível, mas eles podem ser controlados e seu impacto minimizado se houver um esforço coordenado de governos, população e fazendeiros. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, anunciou a criação de um gabinete de crise que envolverá dezenove ministérios e terá 100 milhões de reais em recursos. Sete aeronaves foram destacadas para jogar água nas fogueiras. Lideranças locais reclamam, no entanto, que o governo só age depois da tragédia, em vez de apostar em prevenção e vigilância. A identificação de focos atualmente depende de imagens de satélite, o que, no caso do Pantanal, pode demorar seis horas, tempo de sobra para o rastilho correr.
O governo de Mato Grosso do Sul afirma ter cobrado 54 milhões de reais este ano em multas por incêndios ilegais, mas a infração é invariavelmente contestada na Justiça. Um mecanismo alardeado como novidade promissora foi a introdução de um programa de queimadas controladas preventivamente, para reduzir a vegetação seca antes da temporada das chamas, mas o plano acabou adiado, deixando a palha se acumular nos campos. “O governo precisa dar respostas mais rápidas”, alerta Cyntia Santos, analista de conservação do WWF-Brasil. Se nada for feito, 2024 terminará como triste amostra do que o futuro reserva para o Pantanal: um paraíso arrasado pelo descuido.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899