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Artigo: os ataques de Bolsonaro ao Inpe não conseguem esconder a realidade

Diretor do Inpe recém-exonerado do cargo discorre sobre as acusações feitas pelo presidente da República

Por Ricardo Galvão*
Atualizado em 30 ago 2019, 08h50 - Publicado em 30 ago 2019, 07h40

No dia 19 de julho fui até Niterói (RJ) para participar, como avaliador, de uma banca de doutorado na Universidade Federal Fluminense. Passei pelo velho casarão onde comecei meu curso de engenharia. Devido aos encargos como então diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), há muito não comparecia a um evento acadêmico de alto nível em minha área. Tudo correu bem até o término. Foi quando, por volta das 6 horas da tarde, recebi um duro golpe. Pelo telefonema de um pesquisador aposentado do Inpe, soube da notícia: “Não te preocupes porque já estamos preparando um movimento em tua defesa, e do Inpe”.

“Defesa do ataque de quem?”, questionei. Foi aí que tive ciência da entrevista coletiva do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, concedida naquela manhã, em que afirmou “categoricamente” que os dados do Sistema Deter, do Inpe, seriam “mentirosos”, e que eu supostamente estaria a serviço de alguma ONG. Por iniciativa própria, um veículo de imprensa, ao observar informações corretas coletadas pelo Inpe, concluiu incorretamente que havia ocorrido um aumento de 88% na área desmatada na Amazônia, comparando junho de 2018 ao mesmo período deste ano.

Minha esposa teve de me amparar. Quando me recuperei, um colega logo me trouxe um exemplar da Folha de S.Paulo, no qual a entrevista de Bolsonaro estava descrita. Enquanto refletia acerca de estratégias a seguir, continuei a receber telefonemas de profissionais do Inpe e de representantes da comunidade científica. Todos em apoio ao reconhecido trabalho do Inpe. Ficou claro que o presidente havia me colocado em uma situação na qual qualquer recuo significaria aceitar suas acusações. Antes era difícil imaginar que Bolsonaro poderia responder, de forma tão tosca e agressiva, com agressões levianas, irresponsáveis e imaturas, a levantamentos sérios de um tradicional instituto de pesquisa, motivo de orgulho para o Brasil, com reputação internacional inquestionável. Contudo, foi o que ocorreu.

“O obscurantismo e o autoritarismo caracterizam o círculo próximo ao presidente da República”

Considero pusilânime a acusação de que eu estava a serviço de uma ONG. Do alto de sua autoridade política, Bolsonaro assim estava me condenando, sem provas nem direito a argumentação. Covarde ainda foi o apontamento de que os dados levantados sobre o desmatamento seriam mentirosos — os efeitos reais da destruição da floresta, denunciada pelo Inpe, agora são evidentes nas imagens da Amazônia em chamas e que foram confirmadas até por satélites da Agência Espacial Europeia (veja a reportagem). Cogitei que o presidente tomara tal postura por seu característico descontrole emocional. Todavia, ao analisar o acontecimento com profundidade, compreendi que não era o caso. O ataque era intencional, para preparar meu cadafalso. Seguia a tendência do atual governo em agredir sistematicamente cientistas, resultados de pesquisas acadêmicas, ou mesmo os fatos, em si.

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Desde o início da gestão Bolsonaro, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, vem atacando o Inpe. Até o limite, reagimos de forma respeitosa, explicando como funcionam os sistemas de monitoramento. Escrevemos no site da instituição: “O Deter, lançado em 2004, é um apoio à fiscalização e controle do desmatamento e degradação na Amazônia. Produz diariamente alertas de alteração na cobertura florestal para áreas maiores que 3 hectares. Os alertas indicam áreas totalmente desmatadas (corte raso) bem como as em processo de degradação florestal (exploração de madeira, mineração, queimadas e outras)”.

Não houve resposta. Salles continuou com as críticas, cada vez mais contundentes, mas infundadas — sem jamais ter procurado o Inpe, contrariamente ao procedimento dos ministros anteriores. Solicitei uma reunião no Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) para tentar esclarecer tudo. Fui advertido. Na sequência, a situação agravou-se. O ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, afirmou que os índices seriam “manipulados”. Críticas similares vieram de Tereza Cristina, ministra da Agricultura. Evidenciou-se que os ataques eram orquestrados.

No dia seguinte, enviei ofício ao ministro Marcos Pontes, do MCTIC, alertando, mais uma vez, sobre o fato de que a situação de confronto traria graves consequências para o país e para a imagem do governo, visto que é inquestionável a respeitabilidade internacional do Inpe. Não recebi resposta. Meus contatos, vale frisar, comprovam que, ao contrário do que foi propagado por Bolsonaro, eu me esforcei em me comunicar com o governo. Foi só então, diante da urgência do cenário, que recorri à Academia Brasileira de Ciências e à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Essas instituições, apoiadas por outras sete entidades acadêmicas de alta relevância, voltaram a confirmar o profissionalismo do Inpe. Em agosto, até a Nasa, a renomada agência espacial americana, saiu em nossa defesa, reafirmando os dados levantados sobre o desmatamento.

O aumento da devastação debilitou as florestas. Mesmo que o governo tente convencer, sem nenhuma prova, que toda a destruição viria de alguma ação de ambientalistas revoltados — algo impossível de ser real, diante do fato de que são muitas as razões por trás de milhares de focos de incêndio. Controlá-los requererá milhões de reais em recursos públicos. Isso em plena crise pela qual passamos.

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Há recente pressão internacional, somada ao incômodo de grandes produtores rurais. Caso competidores estrangeiros divulguem que produtos nacionais estão associados a uma política de desmatamento, certamente virão sanções comerciais. A consciência ambiental na Europa é enorme. E até a China se une a esse coro.

É necessário reagir com contundência. Fiz isso, mesmo sabendo que assim seria exonerado do Inpe — o que ocorreu. Valeu a pena, pelo objetivo de defender a ciência perante o obscurantismo e o autoritarismo que caracterizam o círculo próximo ao presidente — a exemplo de ministros indicados por Olavo de Carvalho, que chega a questionar até o fato de que a Terra é redonda.

* Ricardo Galvão, físico e engenheiro, professor da USP, com doutorado pelo MIT (EUA), foi diretor do Inpe de 2016 a agosto de 2019

Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650

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