Os segredos no centro da batalha entre procuradores de Brasília e Paraná
O motivo do embate é uma discussão sobre o acesso ao imenso banco de dados da Lava-Jato de Curitiba
Augusto Aras ainda peregrinava de gabinete em gabinete no Senado quando decidiu que, se tivesse o nome aprovado como novo procurador-geral da República, colocaria freios na autonomia de alguns setores do Ministério Público Federal. Antes mesmo de tomar posse no cargo, anunciou internamente que pretendia regulamentar o funcionamento das chamadas forças-tarefa. E deu a senha de onde pretendia chegar: “Nesse processo, agentes relevantes da Lava-Jato de Curitiba poderão sofrer algum tipo de debacle no caminho”. Prestes a completar um ano no comando da Procuradoria-Geral, Aras de fato enfrenta uma queda de braço com os procuradores de Curitiba, cidade onde se originaram as investigações sobre o maior escândalo de corrupção do país. O motivo do embate é uma discussão sobre o acesso ao imenso banco de dados da operação.
O acervo reunido nos últimos seis anos contém 30 milhões de movimentações financeiras de investigados de peso, como empreiteiros das principais construtoras do país e políticos do quilate do ex-presidente Lula, além de informações sensíveis apreendidas em computadores e aparelhos celulares. Há ainda uma grande quantidade de fotos íntimas e gravações de conversas telefônicas. “Esse banco de dados é o maior do mundo. São mais que 50 terabytes de informação”, resumiu a VEJA, sob condição de anonimato, um procurador da Lava-Jato. Em mãos erradas, o material (que equivale a uma montanha de papel de 5 000quilômetros) pode ser usado para constranger e chantagear. “Há muita coisa lá que não era objeto das investigações da Lava-Jato, não constitui crime, mas pode ser utilizada para o mal”, diz o mesmo procurador. Apenas os registros relativos ao escritório de advocacia Mossack Fonseca, notabilizado por processos de lavagem de dinheiro em paraísos fiscais no exterior, somam 7 terabytes de operações feitas por empresários, banqueiros e políticos brasileiros. São informações que revelam a intimidade, inclusive financeira, de muita gente.
No fim de maio, a subprocuradora Lindôra Araújo, braço direito de Augusto Aras na PGR, fez uma visita à sede do Ministério Público em Curitiba e, entre outras coisas, cobrou o compartilhamento dessas informações. Os procuradores do Paraná, porém, se recusaram a repassá-las. Oficialmente, a Procuradoria-Geral diz que o objetivo é centralizar em Brasília todos os dados colhidos em investigações no país. Também oficialmente, os procuradores da Lava-Jato argumentam que só poderiam repassar os dados solicitados se houvesse uma justificativa formal sobre a necessidade de compartilhamento. “Não nos foi apresentada nenhuma decisão judicial ou investigações ou processos específicos que amparassem o pedido”, disse a VEJA Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa.
Extraoficialmente, o problema é muito mais delicado. Os procuradores de Brasília desconfiam dos propósitos dos procuradores de Curitiba, e vice-versa. A equipe de Aras, por exemplo, trabalha com a informação de que, durante as investigações do escândalo de corrupção na Petrobras, a Lava-Jato colheu dados além do que a lei autorizava. Suspeita-se até que haveria um monitoramento ilegal de conversas telefônicas. Viria daí o interesse em vasculhar de maneira irrestrita o banco de dados da operação. Já os procuradores do Paraná acreditam que está em curso uma ofensiva para desmoralizar a força-tarefa — a tal “debacle” prevista pelo procurador-geral antes de assumir o cargo. Levantam, inclusive, a hipótese de a ação ter propósitos políticos.
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Clique e AssineA data escolhida pela subprocuradora para sua visita, logo depois de o ministro Sergio Moro deixar o governo, foi vista como uma estranha e improvável coincidência. “Comecei a desconfiar que eles queriam achar algum pretexto para pedir, quem sabe, uma ordem de busca e apreensão aqui para promover um efeito desmoralizador”, disse a VEJA um dos procuradores que acompanhou Lindôra Araújo na sede do MP em Curitiba. Um alerta enviado pelo próprio Moro a integrantes do MP paranaense reforçou a suspeita. “O chefe de vocês está indo pra cima”, alertou o ex-juiz em uma mensagem a um dos procuradores da Lava-Jato. Em maio, Augusto Aras deu prazo de dez dias para que todos os terabytes da operação fossem enviados a Brasília. Em decisão sigilosa, na quarta 8, o presidente do STF, Dias Toffoli, determinou que o acervo seja totalmente compartilhado com a PGR. A troca de acusações mútua tem data para terminar. Em setembro, o procurador-geral vai decidir se prorroga ou encerra os trabalhos da força-tarefa. Tudo deve ficar mais claro.
Publicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695