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Os bastidores do comitê de emergência montado por SP devido ao coronavírus

Principal foco da Covid-19 no país, o estado combate a doença com ajuda de consultoria internacional, dados estatísticos e geolocalização por celulares

Por Edoardo Ghirotto Atualizado em 3 abr 2020, 11h05 - Publicado em 3 abr 2020, 06h00

São Paulo enfrenta uma operação de guerra. Essa é a frase mais ouvida quando se caminha pelos corredores do Palácio dos Bandeirantes, a sede do governo, em meio à pandemia do novo coronavírus. Os sinais de que não há exagero na afirmação estão por todo lado. A mobília que João Doria (PSDB) mandou pintar de preto no início de seu governo já exibe manchas do álcool em gel que os funcionários despejam nas mãos a todo momento. Nos salões antes usados para festas, estatísticos de empresas privadas se misturam a profissionais do estado para comparar dados locais em tempo real com informações vindas de outras partes do mundo, a fim de produzir os relatórios que embasam medidas e decretos implementados pela administração no combate à doença. Em suas salas, os secretários fazem uso de um painel que monitora a localização de celulares para ter a real dimensão de quantas pessoas cumprem as recomendações de isolamento social. O esforço faz parte da difícil batalha para tentar minimizar os impactos da Covid-19. Epicentro do problema no Brasil, o estado somou 3 506 pessoas contaminadas e 188 mortes até quinta-feira 2.

O planejamento foi uma das armas importantes para o atual bom desempenho. Os preparativos começaram em janeiro, quando o mundo conheceu o real impacto do coronavírus na China. De lá para cá, comitês foram criados no Palácio dos Bandeirantes para que estudassem os efeitos da pandemia em áreas como saúde, economia, administração e segurança. O front de gestão contra a crise é abastecido com informações de inteligência do braço nacional de uma das maiores consultorias de empresas do mundo, a americana Deloitte. A companhia se comprometeu a fornecer uma análise diária de cenários internacionais ao longo da crise e durante a retomada da normalidade, prevista para ocorrer no segundo semestre, caso a pandemia seja controlada nos próximos meses. Ambas as partes dizem que o trabalho é gratuito. Entre as principais informações repassadas ao governo está um compilado sobre as quarentenas adotadas em mais de vinte países, com dados como o período de duração e a rigidez do isolamento.

REDE DE SAÚDE – Hospital Albert Einstein: o fracasso do sistema de saúde italiano inspirou mudanças no estado (Egberto Nogueira/VEJA)

Em um primeiro momento, o governo aventou a possibilidade de isolar apenas os grupos de risco. Mesmo com as experiências fracassadas de Reino Unido e Itália com essa estratégia, a administração mapeou o número de idosos no estado (quase 7 milhões) e de pessoas que fazem uso de remédios contínuos no SUS (3,6 milhões). Entre os idosos, foi feito um cruzamento para saber quantos não moravam sozinhos e precisariam ser isolados (77,5% do total). A quantidade superava em muito as 220 000 acomodações disponíveis em quartos de hotéis e apartamentos de Airbnb, que seriam improvisadas para as pessoas nessas circunstâncias. A ideia acabou descartada e substituída pelo modelo de quarentena atual.

Em outra frente, os informes de inteligência alertaram para o colapso do sistema de saúde da Itália após a contaminação de mais de 6 000 de seus médicos e enfermeiros. Cada profissional atendia em média três hospitais e, ao ser infectado, provocava um buraco na rede que não era possível ser preenchido. Baseado nesse cenário, o governo montou há uma semana um plano de remanejamento de serviços nos postos de saúde municipais para a Covid-19. A ideia é concentrar os diagnósticos de casos em só uma unidade hospitalar para evitar que a contaminação de médicos imploda o atendimento dos municípios. O governo de São Paulo, que administra a maior parte dos leitos de UTI, fará a liberação de recursos para as cidades e criará condições para que elas recebam pacientes que estão internados na rede estadual por outras enfermidades. Com isso, espera-se abrir de 30% a 40% dos leitos para pessoas que vão necessitar de cuidados intensivos contra o coronavírus.

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Junto com o cruzamento de dados há o monitoramento do fluxo de pessoas pelo estado. A Vivo disponibilizou para o governo um painel de big data em que é possível mapear a localização de seus usuários por meio dos chips de telefones celulares. A gestão Doria afirma que não tem acesso à identificação dos aparelhos, mas obtém informações como perfis de locomoção por idade. O serviço permite aos secretários constatar se os paulistas estão cumprindo a quarentena recomendada pelo governo e quais são as áreas das cidades mais movimentadas. O panorama ajuda a traçar cenários futuros para tipos de isolamento a ser adotados em caso de emergência. Há também outros serviços doados ao governo e que extrapolam a esfera da inteligência. O aplicativo PicPay será escolhido como a plataforma em que a administração fará a primeira experiência de transferência de renda, no caso com o valor referente às merendas escolares. “A grande lição que essa pandemia vai deixar para todos nós é a capacidade de nos unirmos nessa rede de solidariedade”, afirmou Doria a VEJA. “O vírus não escolhe a sua vítima por condição social, ideológica ou político-eleitoral. A vida vem antes do lucro. Por isso, tenho convicção de que sairemos mais fortes desta crise.”

Estudos mostram que as medidas adotadas até aqui tiveram sucesso em desacelerar a curva de contaminações em São Paulo. Se chegou a representar 90% dos infectados no país, hoje o estado responde por cerca de 44% das contaminações. O secretário de Saúde, José Henrique Germann, afirma que é possível deduzir que a crise terá duração de quatro a cinco meses embasado na “história recente do vírus” em outros países. O pico da doença em São Paulo é esperado para acontecer entre a segunda quinzena de abril e a primeira semana de maio. Com base na avaliação diária dos avanços, o governo vai analisar, até a segunda-feira 6, se a quarentena adotada até o dia 7 será prorrogada no estado.

EXPOSIÇÃO – João Doria: coletivas diárias e confronto direto com Bolsonaro (Ettore Chiereguini/Futura Press)

Decisões dessa natureza passam por reuniões que o vice-governador, Rodrigo Garcia (DEM), coordena todos os dias, às 10 horas, com os secretários no gabinete de crise. Esses encontros contam com a presença do corpo jurídico de Doria. Após a deliberação das medidas com os secretários, o vice se reúne com o governador e esses juristas para alinhavar o texto que será assinado pelo tucano. Os anúncios são feitos em coletivas de imprensa que Doria concede diariamente às 12h30, momento em que ele cava uma entrada ao vivo na Rede Globo durante a transmissão dos jornais regionais na hora do almoço. Sua defesa pelas medidas rígidas implementadas em São Paulo piorou consideravelmente o mal-estar com Bolsonaro, que vê no tucano um adversário para a eleição de 2022. O presidente minimizou por várias vezes a pandemia e, dentro da sua visão de mundo na qual há conspirações por todos os cantos, acusou Doria de parar o estado com o objetivo de prejudicá-lo ao estimular uma recessão econômica. Em uma teleconferência realizada na semana passada, os dois bateram boca feio. Na sequência, Doria passou a ser atacado pela milícia digital bolsonarista nas redes. O governador reforçou a segurança em sua casa e trocou o número do celular depois que suas informações pessoais foram divulgadas nas redes.

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Discussões políticas à parte, o impacto econômico que o prolongamento da quarentena pode provocar é também uma preocupação do estado, responsável por 31% do PIB nacional. “As pessoas ainda não começaram a demitir. O que houve foi uma suspensão, imaginando que todos voltarão a trabalhar no dia 8. Por isso já liberamos algumas linhas de crédito e vimos que todas elas foram tomadas. É a receita para o momento que estamos vivendo”, diz o vice Rodrigo Garcia. As projeções do secretário da Fazenda, Henrique Meirelles, apontam para uma retração de 3% no PIB do Brasil em 2020. “A queda de São Paulo deverá ser um pouco menor, em razão do crescimento de 2,8% do ano passado”, afirma. Segundo Meirelles, o estado perderá 30% da arrecadação no mês de abril por causa da Covid-19. No ano, o cálculo é de queda de 10 bilhões no recolhimento de ICMS. Meirelles está olhando com atenção para setores do varejo que poderão sofrer mais prejuízos em meio à crise, como o de vestuário e de eletrodomésticos, e projetou que as primeiras atividades econômicas a ser liberadas da quarentena serão aquelas que não envolvem aglomerações. “Mas a prioridade no momento é salvar vidas”, ressalva.

O alívio da quarentena só será possível com a superação de uma série de obstáculos nas próximas semanas. Como a capacidade de realização e processamento de testes da Covid-19 é limitada, há inúmeros relatos de pessoas enterradas por complicações respiratórias sem que tenha sido feita a checagem para coronavírus e formou-se uma fila com mais de 15 000 exames à espera de resultados. A soma dos dois problemas cria um tremendo efeito de subnotificação de casos, deficiência admitida pelas autoridades paulistas. Parte dessa questão deve ser amenizada nas próximas semanas com o esforço para aumentar a capacidade de realização de testes de 1 200 para 8 000 por dia no estado. Por outro lado, é certo que o maior monitoramento fará crescer as estatísticas da doença. Há ainda reclamações do Sindicato dos Enfermeiros de que não existem equipamentos de proteção suficientes para os profissionais da rede pública. A iniciativa privada tem mostrado disposição para fazer doações de materiais para as unidades, mas o governo ainda discute qual é a melhor forma de recebê-los sem que haja contestações na Justiça. Como em toda guerra, não há uma solução fácil para os atuais desafios da pandemia. Mas um dos caminhos para vencer esse enorme desafio, sem dúvida, é o uso de inteligência.

Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681

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