Saem de cena a caipirinha, as mulatas, as praias e outros clichês da tradicionalmente amadora propaganda do Brasil para atrair visitantes no exterior. No lugar, entra em cartaz um filme estrelado por Sharon Stone, que, no papel de uma arqueóloga, vem para cá em busca de um tesouro perdido e, de quebra, passa por destinos paradisíacos. O pacote inclui ainda um desenho animado, ambientado na Amazônia, protagonizado por uma onça, inspirado no Rei Leão, e um musical na Broadway. Os animais da fauna brasileira terão a missão de desfazer o que seriam, na visão do governo, as fake news sobre a devastação da floresta, enquanto Carmen Miranda contará a história da música brasileira em um dos palcos da meca do teatro em Nova York.
O responsável por esse projeto mirabolante, concebido dentro da Embratur, é o presidente do órgão, o pernambucano Gilson Machado Neto. Seu objetivo é dobrar até o fim de 2022 o número de turistas estrangeiros que visitam o país, atualmente na casa de 6 milhões por ano. Acertadamente, ele costuma repetir que a marca é uma vergonha nacional, se comparada aos 7 milhões de visitantes anuais da Torre Eiffel, em Paris. E, para quem acha improvável Sharon Stone aceitar um convite para virar nossa garota-propaganda, Machado tem um bom argumento: dinheiro não será problema. Em pouco mais de seis meses no cargo, ele conseguiu multiplicar por quinze vezes o orçamento da Embratur. Neste ano, o órgão terá pelo menos 500 milhões de reais em caixa, ante os 34 milhões disponíveis em 2019. Trata-se do maior orçamento da história do órgão. A façanha foi alcançada em um cenário de pindaíba fiscal geral, enquanto o governo inteiro se espreme para operar com orçamentos guilhotinados.
O feito ainda é maior quando se constata que o valor corresponde a mais da metade dos recursos disponíveis para 2020 no Ministério do Turismo, ao qual a Embratur é subordinada. A propósito, Machado usufrui hoje mais prestígio no Planalto do que o chefe, Marcelo Álvaro Antônio. Enquanto o titular da pasta vive na corda bamba depois de ter virado um dos personagens principais do escândalo do laranjal do PSL, o presidente da Embratur está no restrito rol de amigos do clã Bolsonaro. É um dos convidados assíduos das lives do presidente e viajou recentemente para Las Vegas com uma delegação de parlamentares, entre eles o senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um. O tour faz parte do lobby para legalizar o jogo no Brasil. Machado também se tornou um dos principais articuladores do Aliança, partido que o presidente está tentando viabilizar. Seu gabinete na Embratur, aliás, virou ponto de peregrinação de interessados em se candidatar a uma prefeitura pela legenda. Ele próprio é forte cotado para ser candidato no Recife.
Muito representativo, o salto orçamentário recorde foi obtido por meio de uma medida provisória assinada pelo presidente Bolsonaro em novembro que passou a destinar à Embratur parte dos recursos do Sebrae (que, por sua vez, é financiado por uma taxa cobrada sobre a folha de pagamento das empresas). A MP provocou um profundo desconforto no Ministério da Economia porque atrapalha uma promessa de campanha do ministro Paulo Guedes: “passar o facão no Sistema S” para reduzir a tributação sobre a folha de pagamento. Apesar de não aumentar a tributação, a medida da Embratur dificulta ainda mais o plano, já que torna a agência mais um órgão dependente dos recursos do Sistema S. Irritação ainda maior causou a maneira como a MP foi parida — uma “traição”, segundo membros da equipe de Guedes. Machado teria combinado informalmente com o time do ministro que a Embratur dividiria a verba com a Apex, que faz a promoção das exportações brasileiras — o que não ocorreu. Procurado por VEJA, Machado não quis conceder entrevista.
Formado em medicina veterinária, o presidente da Embratur é conhecido em Pernambuco como sanfoneiro, cantor e dono da banda de forró Brucelose. Ele mesmo costuma dizer que prefere ser conhecido como “Gilson Sanfoneiro”. De acordo com amigos, Machado vem conquistando espaço no governo graças ao “trabalho duro”. Na versão dos inimigos, ele tem se beneficiado de sua condição de “bajulador até inconveniente, que fez de tudo para se aproximar do presidente Jair Bolsonaro e de seus filhos”. Segundo um de seus desafetos, o “sanfoneiro” passou a aparecer nas viagens da campanha presidencial sem ser convidado, o que desagradava ao próprio Bolsonaro.
Faro ele tem. A amizade entre os dois começou quando o atual presidente era um deputado escanteado no baixo clero. Machado se apresentou a Bolsonaro ao vê-lo em um aeroporto. No encontro casual, identificou-se como pecuarista (é criador de gado no Tocantins), produtor de coco e empresário do ramo de turismo (sua fazenda, em Alagoas, é a mesma propriedade onde ele toca a pousada Villas do Taturé). Diante das reclamações do então deputado, que considerava não ter espaço suficiente na mídia, Machado se ofereceu para ajudá-lo. Além de ele próprio ser dono de duas rádios (em cidades pequenas de Alagoas e Pernambuco), contou ser amigo do empresário Vicente Jorge Rodrigues, proprietário de uma emissora de televisão e duas rádios afiliadas da CBN, também do sistema Globo. Em 2015, Machado conseguiu que Rodrigues abrisse os microfones da CBN a Bolsonaro, que fazia campanha acirrada contra o governo petista e já tinha planos de ser presidente. Com a vitória do capitão, Machado entrou para o governo, primeiro na função de secretário de Ecoturismo no Ministério do Meio Ambiente. Cinco meses depois, mesmo sem nenhum feito conhecido, foi promovido a presidente da Embratur. Até agora, a principal medida de sua gestão (uma decisão tomada antes de sua posse) foi a implementação do fim da obrigatoriedade de visto para visitantes dos Estados Unidos, Japão, Canadá e Austrália. Uma vez no cargo, nomeou como embaixadores do turismo nacional o ex-jogador Ronaldinho Gaúcho, o cantor Amado Batista e outras celebridades do esporte e da cultura.
Na toada de demonstrar fidelidade a Bolsonaro, Machado rompeu até com antigos parceiros. Um deles foi o deputado Luciano Bivar, seu conterrâneo, presidente do PSL. Depois de ajudar na aproximação de Bolsonaro com o PSL, ele se desentendeu com Bivar, que havia descartado seu pedido: ser candidato ao Senado por Pernambuco. A briga chegou a ponto de Machado entregar a Bolsonaro um dossiê em que acusava Bivar de ter mandado matar uma massagista que era sua amante e estava grávida de oito meses de um filho do político. A causa da morte, ocorrida em 1982, foi dada como afogamento, mas as dúvidas permaneceram, porque a vítima apresentava sinais de violência. Revelado por VEJA, esse antigo caso voltou à tona na disputa pelo comando do PSL, no fim do ano passado, quando o já presidente deixou o partido para montar o Aliança.
Embora tenha acumulado muitas vitórias até aqui, Machado enfrentará um duro teste. Dentro do Congresso, a movimentação para derrubar a medida provisória que inflou o caixa da Embratur é forte. As MPs têm período máximo de validade de 120 dias. No caso da Embratur, o prazo expira em maio. A bancada das micro e pequenas empresas promete se mobilizar para derrubá-la ou reformá-la, de modo que o Sebrae não perca recursos. Mas “Gilson Sanfoneiro” se diz pronto para a ameaça. Seria muito importante que o turismo brasileiro tivesse algo a ganhar com isso. Por enquanto, os planos mirabolantes em gestação na Embratur sugerem uma grande desafinada, e, o que é pior, a preço de ouro.
Publicado em VEJA de 5 de fevereiro de 2020, edição nº 2672