O que há por trás da polêmica sobre o leilão de escolas em São Paulo
A concessão da gestão de escolas segue adiante, mesmo enfrentando forte oposição à participação da iniciativa privada na educação pública
A inserção da iniciativa privada na prestação de serviços públicos nunca foi um processo isento de polêmica. Desde as primeiras privatizações após o fim do ciclo militar, iniciadas timidamente com José Sarney e Fernando Collor e aprofundadas com FHC, a desestatização de atividades em setores como telefonia, energia, ferrovias e bancos sempre foi tocada sob choro e ranger de dentes. Aos poucos, porém, a prática foi vencendo resistências e tomou quase todas as áreas do Estado. Há uma, no entanto, no qual ela é incipiente e, quando avança, é debaixo de muita objeção: a educação. Foi o que ocorreu com o leilão de escolas feito pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, nos últimos dias. No primeiro lote, a Justiça deu liminar, depois cassada, ao sindicato dos professores (Apeoesp) para sustar o processo. Na segunda-feira 4, no segundo leilão, o martelo foi batido na B3 debaixo de protestos de docentes e militantes de esquerda do lado de fora, com direito a tentativa de invasão, empurra-empurra e uso de cassetetes e bombas de gás.
A bem da verdade, o projeto paulista passa longe de qualquer intervenção na área pedagógica. A iniciativa envolve a construção e manutenção de 33 escolas por 25 anos, em dois contratos que, ao final, vão somar quase 7 bilhões de reais pagos às concessionárias Consórcio SP + Escolas e Novas Escolas Oeste SP pela gestão das unidades. Com isso, em vez de as escolas terem vários contratos para cada um dos serviços que hoje já são feitos por empresas (como merenda, segurança e manutenção), o governo vai gerir apenas um por lote. Toda a parte educacional seguirá sendo feita por servidores do estado, sob as regras da Secretaria da Educação. Um projeto semelhante, o Somar, de Minas Gerais, foi implantado em 2022, mas abrange apenas três unidades. No Paraná, o governador Ratinho Junior (PSD) sancionou em junho lei para terceirizar 200 escolas já existentes, mas nenhuma foi concedida ainda.
Apesar da oposição que suscita, o projeto de São Paulo envolve um número muito pequeno de unidades — menos de 1% da rede (veja o quadro). A ideia do secretário de Parcerias em Investimentos, Rafael Berrini, sob cuja guarda as PPPs nascem e crescem, é economizar com burocracia. “Estamos criando uma maneira nova de pensar e de gerir essas escolas, que vai trazer mais eficiência. O jeito como está hoje não é o melhor”, diz. A gestão já planeja voos mais altos: está previsto para o segundo semestre de 2025 o leilão da reforma de 143 escolas na capital e a inclusão de 200 em certame está em estudo no governo.
O ambicioso plano de incluir a gestão privada na educação pública é uma experiência interessante, mas não é garantia de sucesso. No exterior, onde o modelo mais frequente é o das charter schools (escolas inteiramente geridas por organizações sem fins lucrativos custeadas por verba pública), há tantos resultados positivos quanto negativos. A aposta sempre é que, livre da gestão, o Estado possa se concentrar no estudante. “A educação pública tem especificidades. Para os alunos dessa rede, especialmente os mais vulneráveis, a escola precisa resolver os problemas deles. Se repassarmos a parte administrativa a um ente privado, o diretor pode ter mais foco nisso”, diz Claudia Costin, professora da FGV e ex-diretora de Educação do Banco Mundial. Outro desafio, lembra, é a necessidade de um sistema qualificado de fiscalização, que, na proposta, ficará debaixo do guarda-chuva da Arsesp, a agência que regula serviços públicos em São Paulo.
Um dos fatores que provocam a resistência ao projeto é de cunho ideológico. “A educação é de certa forma intocável, porque mexe com o modo de pensar de futuras gerações”, diz Maria Antonia De’Carli, mestre em ciência política pela London School of Economics. Uma crítica frequente, mas que carece de consistência, é a de que a entrega da administração dos colégios possa ser a porta de entrada para uma privatização radical do setor, incluindo a da parte pedagógica. É uma preocupação razoável, mas, até agora, no entanto, ninguém dá sinais de avançar o sinal. Parte da resistência se deve também a questões políticas. No caso de São Paulo, a Apeoesp, que lidera a resistência na Justiça e nas ruas, é uma entidade filiada à CUT e historicamente ligada ao PT, que fazem oposição a Tarcísio.
É fato que a gestão dele ainda precisa mostrar mais serviço nessa área. Os resultados do Ideb de 2023, primeiro ano do mandato de Tarcísio, mostram São Paulo abaixo da meta, que deveria ter sido alcançada em 2021, nos anos iniciais e finais do ensino fundamental e do médio. Além disso, não é difícil encontrar escolas públicas em péssimas condições de estrutura, o que, claro, dificulta o aprendizado e o interesse do aluno. Diante desse quadro, é urgente buscar novas soluções. A boa notícia é que o governo decidiu fazer a lição de casa. Vale acompanhar de perto os resultados da nova experiência.
Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2024, edição nº 2918