Quando teve seu nome indicado à vaga no STF aberta pela aposentadoria do ministro Carlos Ayres Britto, em junho de 2013, Luís Roberto Barroso trazia consigo não apenas o respeitado currículo acadêmico que lhe credenciava no quesito “notório saber jurídico”. O ministro também carregava para a cadeira uma longa trajetória profissional voltada para a garantia de direitos individuais e das minorias. Sua atuação nos últimos anos confirmou as esperanças de quem enxergava nele uma força capaz de engordar a chamada ala progressista da Corte. A expectativa aumentou ainda mais quando Barroso assumiu no mês passado a presidência do Supremo, herdando o cargo de Rosa Weber, que havia acabado de levar à votação em plenário temas incendiários, como a descriminalização do porte de maconha e do aborto realizado em até doze semanas de gestação — isso tudo mesmo diante da gritaria do Congresso, que é de maioria conservadora e tem mostrado as garras diante do que muitos políticos consideram como avanços indevido do Judiciário sobre as funções do Legislativo. Em meio a esse fogo cruzado, o novo presidente do STF parece ter optado em deixar temporariamente de lado os pendores progressistas e vem preferindo agir como bombeiro, na tentativa de distensionar as relações entre esses dois poderes, que chegaram a um nível inédito de estresse nas últimas semanas.
Trata-se de uma atitude bastante sensata diante dos inúmeros sinais bélicos que chegam ao STF disparados do outro lado da Praça dos Três Poderes. Exemplo da disposição de ir à guerra ocorreu quando o plenário do Senado aprovou, em tramitação relâmpago, um projeto de lei que estava desde 2007 no Congresso, instituindo o dia 5 de outubro de 1988 como marco temporal para demarcação de terras indígenas. Detalhe: isso se deu na semana seguinte ao julgamento do Supremo que decidira em sentido contrário. Parlamentares também passaram a vocalizar a luta contra o aborto e a discutir a possibilidade de proibição da união civil de casais homoafetivos, em outro movimento que se choca com direito já adquirido por decisão do STF. Depois de duas tentativas frustradas de votar essa pauta, uma comissão da Câmara finalmente conseguiu levar adiante a iniciativa, aprovando na última terça, 10, o PL que torna ilegal o casamento LGBTQIA+. Felizmente, há poucas chances dessa absurda iniciativa prosperar dentro do Legislativo (precisa passar por outras duas comissões e ainda ser votada em plenário), mas as bancadas conservadoras comemoraram o “feito”, em clara provocação ao STF.
Diante desse cenário de conflito conflagrado, Barroso tratou de imediatamente colocar em prática sua missão de paz. Ao tomar posse, disse que sua gestão será dividida em três (seu número preferido) eixos: no avanço das pautas ligadas aos direitos fundamentais, na comunicação e no relacionamento. No discurso, pregou ainda a necessidade de pacificação nacional. Em seguida, passou a dar outras declarações públicas de que não iria pautar o aborto no plenário da Corte porque, segundo ele, a discussão sobre o assunto “não está madura”. Ao convidar o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para a cerimônia referente aos 35 anos da Constituição, no início do mês, garantiu pessoalmente ao deputado que o assunto não será discutido por ora no Supremo. De fato, a pauta divulgada por ele para o mês de outubro trata de temas tributários, econômicos e trabalhistas — e deixa de fora assuntos ligados aos costumes ou que têm potencial de acirrar os ânimos conservadores. O julgamento sobre a maconha, interrompido no fim de agosto por pedido de vista do ministro André Mendonça, quando já tinha maioria pela descriminalização, dificilmente retornará à discussão neste ano. Uma possibilidade é tentar retomar o tema ao longo de 2024, quando a tensão entre os poderes for bem menor. “Será difícil empurrar muito mais para a frente essa questão”, afirma Flavia Bahia, mestre em teoria do Estado e direito constitucional pela PUC-Rio.
Em outra frente de ação, Barroso planeja ampliar canais de diálogo com lideranças políticas, em especial representantes ruralistas e evangélicos, que formam as duas principais frentes do Congresso e onde está a principal resistência à agenda progressista do STF. Com o discurso fortalecido no embate sobre o que chamam de ativismo judicial do Supremo, ruralistas e evangélicos querem exercer influência sobre as avaliações da Corte para além da pauta de costumes, a exemplo de temas como meio ambiente e segurança pública. Presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, o deputado Pedro Lupion (PP-PR) afirma que o segmento está atento a recentes julgamentos que podem alterar itens do Código Florestal, critérios para desapropriação de imóveis rurais e para reintegração de posse de propriedades invadidas. “Estamos observando os primeiros passos do ministro. Política se faz com gesto”, avisa.
Dentro dessa lógica, os primeiros acenos de Barroso já surtiram algum efeito na Câmara. O presidente Arthur Lira sinalizou a aliados que não pretende pautar temas que podem causar incômodo aos ministros do Supremo, num aceno de bandeira branca dessa casa legislativa. A costura mais difícil será com os senadores, que vêm mantendo a pressão. Nas últimas semanas, eles colocaram em pauta um projeto que estipula mandatos para ministros da Corte e um outro que limita as decisões individuais. O próprio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), fez uma defesa pública dos limites constitucionais dos poderes, reivindicando para o Congresso a prerrogativa da elaboração das leis. Se não bastasse, apresentou Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para criminalizar o porte e a posse de substância ilícita em qualquer quantidade, num movimento que vai de encontro à sinalização apontada pela maioria dos ministros do Supremo quanto à questão das drogas.
Pacheco é o maior termômetro do estado de ânimo neste momento no Senado. Dono de um perfil discreto e pacificador, a ponto de ser citado em rodas informais como potencial nome a ocupar tribunais superiores, ele passou a atacar publicamente o Supremo logo após seu nome ficar de fora da lista dos principais cotados para ocupar a vaga aberta na Corte com a aposentadoria de Rosa Weber. Interlocutores no Congresso afirmam que, ao pressionar o Supremo, ele busca recuperar espaço diante do protagonismo no Congresso alcançado por Lira desde o governo de Jair Bolsonaro, e que segue no terceiro mandato de Lula. Seus recentes movimentos objetivam ainda atrair parlamentares conservadores, que têm proporcionalmente mais peso no Senado do que na Câmara, de forma a garantir não só seu futuro político quando deixar a presidência da Casa, em 2025, como o de seu aliado, o senador Davi Alcolumbre (União-AP), que pretende sucedê-lo. Pacheco não descarta concorrer ao governo de Minas em 2026 e estaria interessado em atrair o eleitor conservador do estado.
Para desarmar os ânimos de Pacheco, sem decepcionar quem espera a continuidade de uma atuação progressista do STF, Barroso precisará demonstrar uma enorme habilidade política daqui para a frente. Ele tem noção exata do tamanho do desafio. Durante sua sabatina, em 2013, quando questionado por senadores como pretendia conduzir sua futura atuação como ministro do Supremo, Barroso recorreu à parábola do equilibrista. E a repetiu quando discursou na cerimônia em que tomou posse como presidente da Corte, dez anos depois. “Na vida, nós estamos sempre nos equilibrando. Viver é andar numa corda bamba. A gente se inclina um pouco para um lado, um pouco para o outro, e segue em frente”, disse nas duas ocasiões. O que o Brasil espera (e precisa) é mesmo de paz e equilíbrio entre os poderes da República.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2023, edição nº 2863