Minha filha morreu no momento mais feliz e radiante da vida dela. É difícil entender uma tragédia dessas. Você fica ao mesmo tempo destroçado e indignado quando percebe que nunca mais terá aquela presença a seu lado. Na tarde de 8 de junho, uma terça-feira, recebi um telefonema da minha sogra no trabalho. Não consegui atender e, ao retornar, ela disse “alô” aos prantos. “É a Kathlen”, falou. Logo pensei que havia acontecido algo com o bebê — ela estava grávida de quatro meses. Mas não era isso. Minha filha tinha sido baleada. Fiquei sem chão. Aí apareceu outra pessoa ao telefone e deu uma enrolada: “Estamos fazendo o possível para salvá-la”. Peguei minha esposa e corremos para o hospital, onde começaram a me contar a história em pílulas. Supliquei: “Se falarem pela metade, eu morro também”. E veio a pancada. Kathlen estava morta, vítima de uma estúpida bala perdida.
Havíamos nos mudado do Complexo do Lins (Zona Norte do Rio de Janeiro) um mês antes, justamente com receio da violência. Com a gravidez, precisávamos proteger minha filha e o bebê. Compramos dois apartamentos fora da favela, um para nós e outro para ela. Kathlen estava preocupada com o que ganhava como vendedora de uma loja de roupas. Temia não dar conta do financiamento do imóvel. Tínhamos combinado de conversar no sábado. Ia lhe dizer que se acalmasse, que pagaria as prestações até ela se organizar. Também queria lhe dar uma boa notícia: sou personal trainer e uma de minhas clientes, designer de interiores, tinha oferecido um emprego a Kathlen, que era recém-formada na área. Mas não houve tempo. A última vez que a vi foi no hospital, já sem vida.
O que ocorreu no dia de sua morte não entra na minha cabeça. Ela passou a vida toda na favela e nunca aconteceu nada. Só voltou para lá para visitar a avó materna, com quem moramos por anos. Queixava-se de saudade. A própria avó dizia para não ir, pois achava que a região não andava segura. Ela foi mesmo assim. Estavam as duas levando o almoço para a tia, dona de um salão de estética na comunidade, no momento em que a polícia, de tocaia em um reduto do tráfico, começou a disparar. Acertaram Kathlen em cheio. Quando desabou, a avó pensou que a neta tinha se abaixado e jogou-se por cima dela para fazer um escudo humano, implorando para que parassem de atirar. Kathlen sangrava. O tiroteio finalmente cessou, e a avó pediu socorro. Com muito custo, acabaram ajudando. Não queriam deixar que minha sogra fosse junto na viatura, mas, diante da tragédia, cederam. Àquela altura, Kathlen estava morta, com um tiro no peito.
Não sinto aversão à polícia. Tenho amigos e alunos em todas as esferas da segurança pública. Mas vejo uma diferença de tratamento quando a tropa deixa as áreas mais ricas da Zona Sul e cruza o Túnel Rebouças. Não me conformo. Por que na favela, onde as pessoas tanto precisam de amparo, vão entrando com o pé na porta, como se a vida ali valesse menos? A culpa pela morte da minha filha é do Estado e sei que sou só mais um nesse roteiro que se repete a cada dia. A polícia entra na favela com ódio, não com inteligência, e, no confronto com os bandidos, vem tiro de tudo o que é lado. No meio do fogo cruzado, gente de bem como Kathlen morre da forma mais banal. O descaso é inaceitável. E o coração que sangra não é o deles. Nenhuma autoridade me ligou para prestar condolências. Tiraram a vida da minha filha e a do filho dela ainda na barriga, mudaram a história da minha família para sempre, e nem uma palavra. O enxoval do bebê já estava sendo montado — tínhamos fraldas, sapatinhos e roupas. É uma dor que lateja, mas não me permite silenciar. Basta.
Luciano Gonçalves em depoimento dado a Marina Lang
Publicado em VEJA de 23 de junho de 2021, edição nº 2743