Não precisa ser um inferno
O bom exemplo de parceria público-privada (PPP) em um presídio mineiro pode ser um modelo para socorrer o caos do sistema prisional brasileiro
O mineiro A.C.G., de 38 anos, foi preso pela primeira vez aos 19. Hoje, já cumpriu quinze dos 48 anos que somam suas condenações por assalto a mão armada, tráfico de drogas, formação de quadrilha e homicídio (matou “um desafeto”, admite). Em uma das quatro prisões por onde passou, A.C.G. chegou a dividir cela com 119 detentos. “Era difícil até respirar”, lembra. Atualmente, ele está no Complexo Penitenciário Público-Privado (CPPP), em Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte. É tudo muito diferente na prisão administrada pela iniciativa privada: “Aqui são quatro camas e quatro internos por cela. A gente até brinca que entrou no programa ‘minha cama minha vida’”. O preso falou com VEJA em uma sala com mesas, cadeiras e computadores, onde trinta internos fazem, a distância, faculdade de administração de empresas ou contabilidade. A.C.G. está no sétimo semestre de administração.
Segundo o último censo carcerário, de 2016, o Brasil tem uma população de 727 000 detentos, que se amontoam em 368 000 vagas (veja o quadro abaixo). Além de desumana, a superlotação reduz, quando não elimina, atividades de educação e trabalho. “Esse ambiente favorece o crescimento de facções, que vendem segurança aos apenados”, afirma José Vicente da Silva, ex-secretário nacional de Segurança Pública. Rebeliões e matanças são comuns nas prisões brasileiras — o caso mais recente, no fim de maio, em presídios no Amazonas, deixou 55 mortos em dois dias, resultado de uma cruenta disputa entre membros de uma facção.
O CPPP de Ribeirão das Neves, que abriga 2 164 internos em suas 2 164 vagas, é uma exceção no universo superlotado, sujo e violento dos presídios brasileiros. Em seis anos e meio de operação, não registrou nenhuma rebelião, nenhum assassinato e teve apenas duas fugas. As três unidades do complexo, monitoradas por quase 800 câmeras, são consideradas livres de doenças de pele e de cáries, enfermidades que reinam nos cárceres Brasil afora. Todo interno que chega à prisão passa por triagem com médico e dentista. Outro ponto alto do CPPP é a taxa de ocupação dos presos: 48% trabalham e 70% estudam. Contando-se os cursos extracurriculares, como preparatório para o Enem e estudos bíblicos, por exemplo, mais de 90% dos internos participam de alguma atividade educacional. “O objetivo é mantê-los ocupados e, sobretudo, desenvolver todo tipo de habilidade que ajude na recuperação e reinserção na vida familiar e profissional”, afirma Rodrigo Gaiga, diretor da GPA, empresa que opera o complexo.
O sucesso de Ribeirão das Neves deve-se a um modelo que, embora ainda seja único no Brasil, pode constituir um socorro para o falimentar sistema prisional do país: a prisão foi construída e é administrada em regime de parceria público-privada (PPP). O parceiro privado, a GPA, investiu 330 milhões de reais para construir e equipar o presídio do zero. Em troca, operará o complexo por trinta anos, cobrando pelos serviços prestados ao governo de Minas Gerais (que cedeu o terreno, de 66 000 metros quadrados). “É claro que tudo depende da qualidade do contrato, das regras definidas. Mas, de largada, uma PPP desse tipo tende a dar bons resultados. Quando o responsável pela construção do presídio é quem vai operá-lo, ele vai se esmerar para reduzir falhas e custos de manutenção”, afirma o engenheiro Rubens Teixeira, especialista em PPPs.
Atualmente, o governo mineiro paga 3 900 reais mensais por detento. Há muitas variações de custo em todo o Brasil. Enquanto alguns estados contabilizam menos de 2 000 reais por preso, outros chegam a 5 000 reais em presídios superlotados. “Dificilmente pagamos o preço cheio, pois o contrato prevê descontos quando há falha de algum indicador”, pondera Luciana Lott, funcionária da administração penitenciária de Minas Gerais que supervisiona o contrato com a GPA. No preço, estão incluídas todas as despesas com os internos: alimentação, higiene pessoal, vestuário e remédios. A Secretaria de Administração Penitenciária é responsável pela segurança da muralha externa e pelo Grupo de Intervenção Rápida, espécie de batalhão de choque, que fica de prontidão fora das unidades. Todas as obrigações da empresa e do governo são fiscalizadas por uma empresa de auditoria independente, a Accenture.
Com o atual déficit de vagas no sistema carcerário brasileiro, seria necessário construir 300 novas unidades prisionais no país para debelar a superlotação. Com a maioria dos estados quebrados, sem dinheiro até para pagar o salário dos servidores, não adianta esperar por investimentos públicos. “As PPPs prisionais podem ajudar, e muito, a vencer esse desafio. O segredo é acertar o contrato”, afirma José Vicente da Silva. Para entender o potencial da PPP, é preciso corrigir a ideia genérica de “presídio privado”, rubrica que comporta modelos deficientes. As quatro prisões do Amazonas em que houve morte de presos em maio estão entre as seis administradas por uma empresa privada, a Umanizzare, que cobra em média 4 700 reais mensais por preso (há suspeitas de superfaturamento). A diferença crucial está no modo como se estrutura o contrato. A Umanizzare opera em cogestão, regime em que o estado contrata uma empresa para operar os serviços de alimentação, limpeza, manutenção e lavanderia. Nessa modalidade, o contrato é geralmente curto, de um a cinco anos, e a empresa privada não realiza investimentos para a construção do presídio. No Complexo Penitenciário Anísio Jobim, com cerca de 1 100 detentos (o dobro de sua capacidade), há uma única sala de aula, com capacidade para 86 alunos; os professores são cedidos pela rede estadual e costumam faltar. Todos os agentes penitenciários são funcionários públicos. A empresa não tem a responsabilidade nem o poder de planejar a administração ou de contratar e demitir profissionais. Contratos de cogestão (há pelo menos vinte pelo Brasil) costumam ser um mero quebra-galho para os estados. Pelo que se vê em Minas, a PPP é um modelo mais eficiente.
Publicado em VEJA de 12 de junho de 2019, edição nº 2638
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