Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Continua após publicidade

Não é vitimismo

Professor de discriminação e diversidade da FGV explica por que o Brasil é racista, mas vê avanços: sociedade já sabe que a pluralidade é caminho sem volta

Por João Batista Jr. Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h50 - Publicado em 22 fev 2019, 07h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Filho de uma ex-empregada doméstica, Thiago de Souza Amparo, de 33 anos, formou-se em direito e fugiu das estatísticas. Graduado pela PUC-SP, ele compõe o grupo de 12,8% dos negros que têm diploma universitário. Com uma bolsa financiada pelo me­gaempresário George Soros, Amparo cursou mestrado e doutorado em direitos humanos pela Central European University, em Budapeste, para depois ser pesquisador visitante na Univer­sidade Columbia, em Nova York. O racismo e suas consequências foram o tema central de seus estudos, com o objetivo de traçar alternativas e pesquisas para combater a exclusão social. Há dois anos ele leciona a disci­plina de discriminação e diversidade na Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. O especialista comenta as discussões sobre racismo que tomaram as redes sociais nas últimas semanas, com os casos do retrato festivo da mulher loira ao lado de duas negras, do assassinato de um jovem negro dentro de uma unidade do supermercado Extra e da estreia de Maju Coutinho como a primeira mulher negra a apresentar o Jornal Nacional.

    O Brasil é um país racista? Historicamente, o país tem convivido com o racismo e o perpetuado. Fomos o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888, e somos um dos países com o maior número de assassinatos de negros. Os negros representam 54% da população, mas são 71% das vítimas de homicídio. Entre os mortos por homicídio de 2005 a 2015, o número de brancos caiu 12% e o de negros aumentou 18%. O mercado de trabalho também é excludente. Uma pesquisa do Instituto Ethos mostra que há apenas 5% de negros nos conselhos das 500 maiores empresas do Brasil e somente 6,3% ocupam algum cargo gerencial nessas mesmas empresas. Há, portanto, um longo processo de violação da população negra. Existe um racismo estrutural, presente em todos os setores da sociedade.

    O que é racismo estrutural? O racismo não é apenas a vontade de uma pessoa, de um indivíduo que se recusa a sentar-­se à mesa com outro. Quando uma pessoa olha para outra, forma-se uma opinião permeada por códigos sociais. Exemplo: pensar que os jovens negros são mais perigosos e, então, justificar o fato de a polícia usar mais ação letal contra esse grupo. O racismo está dentro das fissuras sociais. A ausência de negros em restaurantes ou lojas caras com­preende o que a literatura chama de “espaços brancos”, condição em que a sociedade se habitua com a ideia de que existem locais onde não há negros ao redor. O termo para essa situação é naturalização do racismo. As dificuldades de obter melhores condições econômicas e escolares perpetuam a segregação. Mas está muito claro que a diversidade é extremamente benéfica para a sociedade.

    “Mesmo os negros sendo bem capacitados, muitas vezes a seleção nas empresas é excludente. Para cargos de chefia, ocorre uma busca por indicação — e o networking perpetua a exclusão”

    Quais os benefícios concretos? Cotas em universidade não são caridade. As instituições públicas precisam ser abertas à população, e não segregadas para a elite. Uma pesquisa da consultoria McKinsey revela que a plurali­dade de funcionários faz com que a companhia tenha 35% a mais de lucro. Isso porque aumenta a rede de contatos e permite soluções inovadoras para os problemas — uma equipe diversa pensa de forma diferente. O Brasil está acordando para isso. Uma pesquisa feita pela Fundação Getulio Vargas em parceria com o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados mostra que menos de 1% dos sócios, advogados ou estagiários dos principais escritórios do país é composto de negros. Nove escritórios se uniram para reverter ­essa lacuna gigantesca.

    Entre 2005 e 2015, o porcentual de negros no ensino superior passou de 5,5% para 12,8%. Como avalia esse salto? É significativo, mas muito pequeno dado o fato de os negros representarem mais da metade da população. É inepta a desculpa de que não há negros qualificados. Mesmo eles sendo bem capacitados, muitas vezes o processo seletivo das empresas é excludente. Para cargos de chefia, ocorre uma busca por indicação — e o ­networking perpetua a exclusão.

    Continua após a publicidade

    Além do aumento no índice de negros nas universidades, qual seria o outro legado das cotas? Tornar as demandas mais presentes. A discussão sobre diversidade hoje está muito forte nas empresas, com várias delas adotando medidas para tornar seu quadro mais plural. Isso é fruto de uma pressão desses profissionais negros que estão querendo entrar no mercado, muitos graduados como cotistas. As ações afirmativas são fundamentais para mover as estruturas de desigualdade no país.

    Qual é a importância de Maju Coutinho ter sido a primeira mulher negra a apresentar o Jornal Nacional em quase cinquenta anos? Enorme. No jargão da academia, usamos o termo “corpos presentes”. É ótimo ter um branco progressista defendendo os direitos dos negros, mas é fundamental ver os negros, eles próprios, ocupando diferentes espaços. Vale desde uma boneca negra na prateleira da loja, uma CEO no comando de uma empresa, até a apresentadora do principal telejornal do país. A Maju é qualificada e está no topo da pirâmide da sua profissão, e ­isso permite aos jovens negros pensar que também podem ocupar aquele espaço. O Jornal Nacional debate as grandes questões nacionais, o apresentador precisa ter a cara do Brasil. E ela, de fato, tem a cara do Brasil. Aconteceu algo a ser ressaltado na estreia dela.

    O quê? Maju Coutinho teve de noticiar a morte de Pedro Henrique Gonzaga, o rapaz negro de 19 anos que sofreu um mata-leão dentro de um supermercado Extra, no Rio de Janeiro. Por que ela relatar tal crime é relevante? Porque é uma pessoa negra dando a notícia, que traz consigo suas experiências e ocupa seu lugar de fala.

    O senhor diria que o assassinato do jovem negro no supermercado foi resultado de racismo? O caso ainda precisa ser investigado, mas exemplifica uma conduta comum de força excessiva dispensada aos jovens negros. Como disse, no Brasil, devido ao racismo histórico, os jovens negros são percebidos como mais perigosos. Então o uso de força letal é um resultado de racismo estrutural. No caso do Pedro, houve uma manifestação de pessoas ao redor pedindo que o segurança parasse, mas foi pouco. A cena exemplifica bem como o racismo opera: o uso da força descabida e o fato de haver várias pessoas em volta que, embora peçam ao segurança que pare, não tomam uma atitude. Ocorre também uma conivência por parte dos outros seguranças — eles assistem a tudo sem se mover. Ninguém ali falou da raça do menino, mas foi uma encenação da desconsideração com o corpo e com a vida do homem negro.

    Continua após a publicidade

    Por que o assassinato do rapaz repercutiu menos do que o espancamento de um cachorro em uma unidade do Carrefour, em novembro? Os altos índices de morte de negros, sobretudo entre os jovens, fizeram com que o país se acostumasse com essas mortes. O Brasil naturalizou esse fato, o que é absolutamente inaceitável. Dessa forma, infelizmente, a reação a esse episódio comparada com a que se deu no assassinato do cachorro no Carrefour é menor.

    “A cena da morte de Pedro exemplifica bem como o racismo opera: o uso da força descabida e o fato de haver várias pessoas em volta que, embora peçam ao segurança que pare, não tomam uma atitude”

    A diretora de moda Donata Meirelles, que é loira e rica, apareceu, numa foto, sentada e, ao seu lado, em pé, estavam duas negras vestidas com roupa de baiana. Por que a imagem provocou alvoroço e indignação? Em tempos de redes sociais, uma imagem tem importância muito forte. É fundamental entender aquela foto. No período de escravidão, havia a cadeira de carregar, na qual as negras suspendiam a sua sinhá. Por outro lado, a imagem dessa cadeira ocupada por negros do grupo americano Panteras Negras virou símbolo de resistência, uma forma de reivindicar espaço e poder. De qualquer maneira, a imagem em si deveria ser ofensiva para qualquer pessoa, ainda que a senhora na foto não tivesse essa intenção.

    Por que o fato de uma mulher branca usar turbante causa repulsa em muita gente? Há uma juventude negra antenada com sua ancestralidade. Muitas pessoas que se consideravam morenas ou mulatas, esse um termo pejorativo, hoje se reconhecem negras. Ser negro vai além da cor da pele. Usar turbante faz parte desse resgate da diás­pora negra, quando os africanos escravizados foram enviados a várias partes do mundo. O questionamento se dá pela apropriação cultural. Temos de entender que referências como o turbante não são adereços e a apropriação cultural é danosa quando não tem nenhuma conexão com a ancestralidade. Negro não é fantasia.

    Continua após a publicidade

    Como o Estado pode diminuir o racismo? O racismo é a ofensa a um grupo geral, enquanto a injúria racial é a ofensa à honra de uma pessoa em específico. Muitas vezes, o Judiciário não consegue distinguir quando se trata de algo coletivo ou individualizado. O racismo é inafiançável e imprescritível, já a injúria prescreve. Um dos passos, portanto, é melhorar a compreensão do Judiciário para qualificar esses crimes. Outra forma importante é proporcionar condições iguais a negros em áreas como saúde, educação e trabalho. Não é algo que se resolve do dia para a noite. No ano passado, marcaram-se 130 anos da abolição da escravidão no Brasil. Mas ocorre que foi uma abolição inconclusa. Há consequências da escravidão até hoje, bem perceptíveis: a seletividade penal, a agressão por parte da polícia e a disparidade social. No Rio, existe o elo geográfico. Se o negro mora em área tomada pelo crime organizado, naturalmente ele pode ser considerado traficante. Sem falar que, em casos de batida policial, a palavra do militar pode virar a prova e abrir brechas para abusos e injustiças. O negro, nesse contexto, não conta.

    O senhor já foi vítima de racismo? Quase todas as vezes em que entro em uma loja, digamos, chique usando uma roupa informal, recebo olhares estranhos. Já cheguei a reunião em que todos estavam a postos, mas não começaram por acreditar que eu não seria a pessoa esperada para o início da conversa. Também me colocaram algumas vezes fora da mesa principal de uma reunião por achar que eu não deveria estar ali, onde se tomariam decisões. Eu estudava em colégio particular com bolsa. Havia dois negros em uma sala com mais de 100 estudantes. A bolsa era um desconto por eu ser um bom aluno. Em uma competição de física, um garoto me disse que eu, um negro, não ganharia a disputa. Estudei tanto que acabei vencendo. Fui para a faculdade para ser juiz por ser conciliador. Minha mãe trabalhou como empregada doméstica e cabeleireira, e depois foi estudar direito. Ela entrou na faculdade quando eu já estava na PUC. Meu pai também é advogado. Eu conheço de dentro de casa como o estudo cria oportunidades, promove a ascensão social e dá um poder de voz.

     

     

     

    Publicado em VEJA de 27 de fevereiro de 2019, edição nº 2623

    Continua após a publicidade
    carta
    Envie sua mensagem para a seção de cartas de VEJA
    Continua após a publicidade

    Qual a sua opinião sobre o tema desta reportagem? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br

     

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Semana Black Friday

    A melhor notícia da Black Friday

    BLACK
    FRIDAY

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    Apenas 5,99/mês*

    ou
    BLACK
    FRIDAY
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

    a partir de 35,60/mês

    ou

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.