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Não cola mais

A decisão da rede de restaurantes Hooters de colocar as garçonetes para trabalhar de calcinha gera onda de protestos. A sociedade não tolera atitudes assim

Por Simone Blanes
21 nov 2021, 13h33

Início dos anos 2001, estado norte-americano de Maryland. A estudante Marina Costin Fuser é candidata a um emprego na Hooters, rede de restaurantes definida em seu site oficial pela “comida apetitosa e asas, cerveja gelada, esportes e, claro, Hooters Girls”,  garçonetes vestidas com curtíssimos shorts cor de laranja e blusa branca colada ao corpo. Durante a entrevista, porém, ela é avisada que aquela vestimenta é obrigatória. “Perguntei se poderia usar algo mais comprido. Disseram não. Agradeci a ‘oportunidade’ e fui embora”, conta Marina, hoje doutora em Cinema e Estudos de Gênero pela Universidade Sussex, na Inglaterra e pós-doutora em Educação pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP).

Segundo a especialista, é muito clara o tratamento dedicado a essas mulheres como se fossem objetivo. Geralmente muito novas, elas estão ali para saciar o desejo do público, majoritariamente masculino e machista, em dominar o corpo feminino, mesmo que seja por meio de olhares e palavras. “Por se tratar de um uniforme, elas têm que se submeter. Só que isso não cabe mais”, diz.

É de se esperar que hoje, em pleno século 21, esteja mais do que clara a consciência de que esse tipo de postura não tem o menor cabimento. Porém, a rede resolveu lançar uma polêmica estratégia para trazer de volta clientes cansados da solidão imposta pela pandemia da Covid-19: diminuir ainda mais os já minúsculos shorts, transformando-os praticamente em hot pants –  peça de lingerie que se assemelha a uma calcinha, muito usada nos anos 1950 como traje de banho ou em poses sexys pelas pin-ups nos pôsteres de revistas da época.

No mesmo dia em que foi anunciada, inicialmente no Texas, a notícia viralizou nas redes sociais com as Hooters Girls divididas entre indignação e obediência a um fantástico e irreal mundo criado pela empresa que coloca essa absurda condição como algo a se festejar. “Não é um trabalho, é uma oportunidade”, diz o site da Hooters, fundada por seis amigos em 1983 em Clearwater, na Flórida, cujo próprio nome sugere um trocadilho com a palavra seio, em inglês.

Nos vídeos, elas expõem suas queixas, comparando os diminutos shorts com o comprimento dos anteriores, bem maiores. Kirsten Songer foi uma das que mais fez barulho no Tik Tok equiparando o novo look à roupa íntima. “É uma calcinha! Não foi isso que eu concordei em usar há um ano, quando fui contratada”, disse a garçonete de 22 anos e estudante da Escola de Medicina da Universidade Carolina do Sul.

Algumas garotas tentaram sair em defesa sob o argumento de que o tal uniforme estaria rendendo mais gorjetas, mas os protestos foram muito maiores e a empresa não teve outra alternativa a não ser voltar atrás: “Continuamos ouvindo e atualizando a imagem das Hooters Girls e esclarecemos que elas têm a opção de escolher entre os uniformes tradicionais e os novos”, disse um porta-voz da rede ao portal Business Insider. Porém, segundo funcionárias, na prática não é bem assim e, internamente, o uso dos novos uniformes é obrigatório.

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Não é de hoje que empresa enfrenta críticas pela exarcebada sexualização feminina. A miss e blogueira Jenaae Jackson, ex-Hooters Girl, relatou que é praxe da rede priorizar a beleza física de suas contratadas. “Não é segredo que a Hooters dá muita importância à aparência das garotas”, disse em seu blog Hello Bombshell.

Brittanny Anderson, chef e dona do Metzger Bar and Butchery e ex-garçonete da rede, é mais enfática. “É um trabalho inteiro baseado em assédio sexual”, disse à revista americana GQ, em 2018. “Você é paga para ser assediada sexualmente e objetificada. Todo mundo no Hooters está ciente disso.” Além disso, ao longo dos anos a rede de processos judiciais movidos por ex-funcionárias com queixas de sexismo, gordofobia e discriminação racial e de gênero.

Infelizmente, casos como o da Hoorters não são novidades. O mercado publicitário, por exemplo, já pecou muito nessa questão. É só resgatar algumas propagandas de cunho machista como a das gravatas Van Heusen, que mostrava uma mulher ajoelhada à beira de uma cama, servindo o marido, sob os dizeres “mostre a ela que o mundo é dos homens” ou das calças Dracon, na década de 1960, na qual um homem pisa sobre a cabeça de uma mulher vestida como um tapete com o slogan “é bom ter uma mulher pela casa”.

Mais recentemente, em 2015, o Ministério da Justiça lançou a equivocada campanha “Bebeu, Perdeu”, colocando as mulheres que bebiam demais como culpadas caso sofressem abusos. Só que agora, definitivamente não cola mais.

Ainda bem, a sociedade não tolera mais isso. Um bom exemplo é o fim do desfile anual da Victoria´s Secret. grife que em 2001 chegou a atrair 12,4 milhões de telespectadores ávidos por assistir modelos altas e magras, de lingerie e ostentando asas de anjo. Em 2019, a apresentação teve de ser cancelada por conta das críticas e denúncias de sexualização das modelos, além da falta de diversidade ao preservar um padrão inatingível de beleza.

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Marco na carreira de top models como Heidi Klum, Gisele Bündchen e Alessandra Ambrosio, o fashion show não resistiu às bruscas quedas de audiência até sua última apresentação em 2018, com 3,27 milhões de espectadores, redução de 41% das ações da L Brands – grupo que detém a grife – e 30 lojas fechadas.

A Hooters ainda não chegou nesse ponto. Vendida em julho de 2019 para a Nord Bay Capital e TriArtisan Capital Advisors, LLC, mantem-se como uma das redes mais lucrativas dos Estados Unidos, com receita anual estimada em cerca de US$ 900 milhões de acordo com a consultoria Technomic. Antes da pandemia, chegou a crescer 2% ao ano se comparada a concorrentes como Hard Rock Café, Applebees e TGI Friday.

Hoje, pelo site oficial, tem mais de 420 restaurantes em 42 estados e 29 países. “Os consumidores voltaram rapidamente”, disse Sal Melilli, CEO da Hooters of America. Segundo o executivo, as vendas em 2021 aumentaram em 10% em relação a 2019. “Somos fortes”, completou.

Mas é claro que esses números nada têm a ver com os novos shortinhos das Hooters Girls. Embora Melilli atribua o crescimento à fidelidade dos clientes, ele se deve principalmente à reabertura das  atividades presenciais, à boa adaptação do sistema de delivery e as marcas virtuais da rede. Na verdade, a redução dos uniformes tinha o intuito de potencializar a boa fase atraindo mais marmanjos aos restaurantes, só que não deu certo.

No Brasil, o perfil sexista da rede não durou nem dez anos. Com quatro unidades em São Paulo desde 2002, era claro o incômodo dos clientes que não aderiram a tal diversão à moda americana, fazendo com que a Hooters fechasse as portas de sua última casa, no Jardim Paulista, em São Paulo, em março de 2019. “Essas pessoas estão desesperadas”, afirma a pesquisadora Marina Costin Fuser. “No entanto, depois do desespero vem o equilíbrio. Algumas pessoas irão se transformar e as que não entenderem serão atropeladas pelo trem da história.”

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