Quando a nova Câmara emergiu das urnas em 2022, o sentimento era de muita expectativa, uma vez que 40% da casa havia sido renovada pelos eleitores. Perto de terminar o primeiro ano da nova legislatura, no entanto, o desempenho dos parlamentares pode ser considerado frustrante: na média, o trabalho deles recebeu nota 3,6 — em uma escala de 0 a 10 —, segundo o Índice Legisla Brasil, que monitora a performance dos eleitos com base em critérios como apresentação de projetos (e sua relevância) e atuação no acompanhamento do poder público. Na soma das análises de dezesseis variáveis, apenas quarenta dos 513 deputados receberam cinco estrelas, a avaliação máxima pelo trabalho.
Se não bastasse a média geral ruim, outras performances ficaram ainda mais aquém do desejado. Em fiscalização do governo, por exemplo, a nota foi de 1,5 — um desempenho preocupante em uma das funções primordiais do Legislativo. Um pouco acima da média, mas ainda baixas, ficaram as avaliações das atuações na produção legislativa (3,9) e em mobilização, que leva em conta, por exemplo, a ocupação de postos na burocracia da Casa (4,2).
Entre os destaques individuais negativos do ranking estão os deputados que tiveram participação irrisória na rotina da Casa, limitaram-se a assinar projetos elaborados por colegas e atuaram de maneira reativa às pautas em discussão. A lanterna ficou com Vinicius Gurgel (PL-AP), que exerce o seu quarto mandato. Desde fevereiro, o vice-líder do partido contabiliza apenas 66 dias de presença no plenário, mais de 1 milhão de reais gastos em verbas de gabinete e zero projeto apresentado. Outro nome que chama atenção é o de Eunício Oliveira (MDB-CE), que presidiu o Senado de 2017 a 2019. Na sua volta à Câmara, o emedebista não ocupa cargos em comissões e apresentou só um projeto de lei, destinado a ressuscitar programa de renegociação de dívidas rurais de 2006 — conhecido, veja só, como “Lei Eunício Oliveira”.
Na ponta oposta do ranking, os mais bem posicionados se destacam pelo desempenho satisfatório em todos os aspectos do trabalho legislativo. A deputada mais bem avaliada foi Laura Carneiro (PSD-RJ), parlamentar já no sexto mandato e vice-líder do segundo maior bloco. Ela obteve nota máxima em nove das dezesseis variáveis. Apresentou nada menos que 47 PLs e foi um dos três deputados que conseguiram ver uma proposta sua virar lei no atual mandato (a que transforma assédios sexual e moral em infrações ao Estatuto da Advocacia). Também foi bem em mobilização política ao participar de dez comissões durante a atual legislatura.
O melhor indicador obtido pelos parlamentares é também um bom símbolo do perfil do atual mandato. Os deputados conseguiram 7,4 em alinhamento partidário, que avalia o comportamento de cada um em relação a seus partidos. O número reflete a organização da Câmara em grandes grupos partidários — existem atualmente dois superblocos, que reúnem 317 deputados. Também pesou a menor pulverização da instituição: as cadeiras estão distribuídas por dezenove legendas, enquanto na legislatura anterior eram trinta.
Considerando-se o comportamento dos partidos, chama atenção no levantamento o caso do PL, a maior bancada da Casa, com 98 parlamentares. A legenda tem doze deputados entre os quarenta que obtiveram cinco estrelas, mas tem também cinco dos dez piores. A sigla está praticamente isolada na oposição a Lula e vive divisão interna entre bolsonaristas e gente ligada ao antigo Centrão. O baixo índice de aprovação de projetos e a falta de coesão dentro derrubaram o PL para o nono lugar no ranking geral de partidos. O alto número de parlamentares bem avaliados se deve à natural maior movimentação de quem está contra o governo de plantão. “O PT tinha a mesma proporção de deputados cinco estrelas em 2022 que o PL tem hoje. Os parlamentares de oposição são, naturalmente, mais atuantes do que os governistas”, diz Luciana Elmais, cofundadora e diretora-executiva da Legisla Brasil.
O trabalho dos atuais deputados na proposição dos projetos repete o mesmo erro de outras legislaturas: um grande esforço que acaba produzindo muita fumaça e pouco calor. Desde o início do ano, os parlamentares apresentaram 4 561 projetos, dos quais apenas 43 foram aprovados. Entre eles o de terça-feira 31, do deputado Kim Kataguiri (União-SP), que aumentou a punição para quem comete furtos e roubos — o furto de celular, por exemplo, poderá render até dez anos de cadeia. Dos onze projetos de lei que viraram norma jurídica na atual gestão — ou seja, foram sancionados e estão efetivamente valendo —, sete vieram do Executivo e apenas um do Judiciário.
Por várias circunstâncias, a avaliação de um trabalho parlamentar é sempre uma tarefa difícil. Uma das dificuldades é tirar o viés ideológico no olhar sobre o trabalho, um dos princípios que norteiam a atuação do Legisla Brasil. Para tentar fazer a análise de forma neutra, o grupo lançou mão de um grande número de indicadores objetivos analisados por 27 especialistas de diversas áreas e que resultou no índice criado pela entidade e por Olívia Carneiro, economista formada pela USP, com mestrado na Universidade de Chicago — e influencer com meio milhão de seguidores no TikTok. A ONG também faz hoje consultoria direta a mais de oitenta gabinetes parlamentares de dezenove partidos políticos, do PT ao Novo. Em julho, lançou o seu primeiro programa voltado ao desenvolvimento de lideranças partidárias e um guia on-line para subsidiar a atuação de vereadores, deputados e senadores.
Vale ressaltar que a decepcionante performance individual dos deputados não se confunde com a da instituição. Em pouco mais de nove meses, a Câmara aprovou projetos importantes como a reforma tributária, o arcabouço fiscal, a desoneração da folha de pagamento e programas sociais como o Bolsa Família, o Minha Casa, Minha Vida e o Mais Médicos. Toda essa pauta, no entanto, veio do Executivo e quase sempre foi tocada às custas de muita negociação política e, não raro, oferecimento de cargos e liberação de emendas. Para 2024, estão previstos quase 40 bilhões de reais para gastos indicados pelos parlamentares, o que significa um quarto do dinheiro para aplicação livre de que o governo dispõe no Orçamento. “Isso mostra uma tendência cada vez maior de aumento do poder do Parlamento e a retirada de prerrogativas que são tradicionalmente do Poder Executivo”, avalia o cientista político José Álvaro Moisés, da USP.
Embora as grandes votações mobilizem mais e ocupem tempo maior das agendas legislativas, é bom os deputados preocuparem-se com seus desempenhos individuais. Entre os 41 que foram avaliados como cinco estrelas na legislatura anterior, 36 conseguiram novo mandato — uma taxa de 88%, contra 57% de reeleitos no geral. Para o Legisla Brasil, isso sugere que o trabalho efetivo no Congresso gera bons frutos para a sociedade e para os parlamentares. “Existe um pensamento comum de que campanha eleitoral e pautas ideológicas geram mais votos do que a produtividade. As estatísticas comprovam que isso é um mito”, diz Luciana Elmais. Outra constatação: o ranking dos cinco estrelas inclui deputados de quinze partidos de diferentes posições ideológicas, o que indica que pode haver bons legisladores em todo o espectro político. As fotografias recentes da Câmara, em que pese alguma decepção, mostram bons caminhos a seguir. E o eleitor, ao contrário do passado recente, parece mais atento.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866