Militar de carreira: o caso do sargento preso com cocaína em voo da FAB
Episódio transforma viagem da comitiva de Jair Bolsonaro ao G20 em um escândalo internacional
O planejamento em Brasília previa um céu azul de brigadeiro. A cúpula do G20 no Japão era para ser uma missão oficial com o frescor das jornadas internacionais para o Palácio do Planalto. Do outro lado do globo, seria o momento de Jair Bolsonaro escapar um pouco dos problemas domésticos e mostrar-se ao público discutindo temas nobres ao lado de grandes líderes do planeta. Um segundo-sargento da Aeronáutica, no entanto, transformou a viagem em um escândalo internacional de tráfico de drogas, depois que as autoridades de Sevilha, na Espanha, localizaram no último dia 25, na mala de Manoel Silva Rodrigues, de 38 anos, nada menos que 39 quilos de cocaína espalhados em 37 pacotes.
Ele atuava como comissário de bordo e seguiu para uma escala na Europa dentro de um avião da Força Aérea Brasileira (FAB), com uma comitiva formada por seguranças e outros servidores encarregados de preparar terreno para a chegada do presidente brasileiro. As drogas foram detectadas em uma revista realizada no aeroporto e ele foi preso imediatamente. Vai responder na Espanha por delito contra a saúde pública, categoria que inclui tráfico de drogas. No Brasil, o Comando da Aeronáutica vai abrir um Inquérito Policial-Militar (IPM) para apurar as circunstâncias do episódio.
A “bomba” explodiu em Brasília ainda na manhã do dia 25. Bolsonaro decolaria de Brasília no fim daquela terça-feira rumo a Sevilha para depois seguir com destino ao Japão. A notícia, publicada em primeira mão pela coluna Radar, no site de VEJA, daria início a uma corrida nos bastidores do Planalto para refazer os planos de voo da viagem presidencial e tentar afastar a crise do palácio. A primeira providência foi mudar a rota da escala de Bolsonaro para Portugal, de modo a evitar que o presidente pousasse diretamente no centro do escândalo, na Espanha, como estava planejado de início. “Imagine o risco de constrangimento, caso as autoridades espanholas decidissem revistar também o avião presidencial”, argumentou uma fonte do Planalto, ao justificar a operação a VEJA.
Na tentativa de esgotar o caso ainda na terça-feira, Bolsonaro enviou ao Radar de VEJA uma nota em que prometia medidas rápidas para elucidar o ocorrido. “Determinei ao ministro da Defesa imediata colaboração com a polícia espanhola na pronta elucidação dos fatos, cooperando em todas as fases da investigação, bem como a instauração de inquérito policial-militar”, disse. Mais tarde, usou seu canal preferido de comunicação, o Twitter, para voltar ao assunto. “Apesar de não ter relação com a minha equipe, o episódio de ontem, ocorrido na Espanha, é inaceitável. Exigi investigação imediata e punição severa ao responsável pelo material entorpecente encontrado no avião da FAB. Não toleraremos tamanho desrespeito ao nosso país!”, escreveu.
O plano de comunicação, no entanto, se revelaria insuficiente para estancar a crise. O caso do militar integrante da tripulação do avião oficial espalhou-se como pólvora na imprensa internacional. Na Espanha, logo vieram à tona a informação dos 39 quilos de cocaína, os detalhes de como o militar nem sequer havia tido o cuidado de mascarar a droga na mala e as medidas tomadas pelas autoridades para investigá-lo.
Com Bolsonaro e boa parte de sua equipe em deslocamento para o Japão, o staff presidencial que ficou no país, com o auxílio dos filhos do presidente, tentou debelar a crise. Quando o Planalto já havia posto na rua a informação de que o militar viajava no avião reserva de Bolsonaro, que o acompanha nas missões internacionais mas ficaria na Espanha de prontidão, veio de Hamilton Mourão a fala desagregadora. “Quando tem essas viagens, vai uma tripulação que fica no meio do caminho; então, quando o presidente voltasse agora do Japão, essa tripulação iria embarcar no avião dele”, disse Mourão, colando o militar-traficante a Bolsonaro. Se não bastasse, especulou em entrevistas que o escândalo poderia ser ainda maior, classificando a conduta do segundo-sargento como sendo de uma “mula qualificada”. “É óbvio que, pela quantidade de droga que ele estava levando, não comprou na esquina e levou, né? Ele estava trabalhando como mula. Uma mula qualificada”, afirmou.
Nas horas seguintes, o vice se retrataria, mas, nas redes sociais, já proliferavam memes e informações, antecipadas por VEJA, de que o militar havia voado com Bolsonaro antes, em fevereiro, numa passagem por São Paulo para o presidente fazer exames de saúde. Ligado ao comando da Aeronáutica, o militar também acompanhou Michel Temer e Dilma Rousseff. Os 39 quilos de cocaína que transportava poderiam ser vendidos no mercado europeu por cerca de 5 milhões de reais, o equivalente a 685 vezes o salário mensal do segundo-sargento, que é de 7 300 reais.
No Congresso, a oposição aproveitou injustamente a situação para surfar na desgraça presidencial. Nada poderia ser mais constrangedor do que um escândalo de drogas para um governo que investe fortemente em uma pauta conservadora de costumes, sem falar no apreço do presidente pela ordem e disciplina militar. O PT agora quer convocar autoridades do Planalto, como o poderoso ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, para explicar o assunto. No plenário da Câmara, na tarde do último dia 26, a palavra “cocaína” foi citada quarenta vezes, 31 delas por parlamentares da oposição.
Nos Estados Unidos, o mais famoso caso envolvendo militares e tráfico de drogas ocorreu nos anos 70. Frank Lucas amealhou uma fortuna estimada em 250 milhões de dólares, virou amigo de celebridades e casou-se com a miss Porto Rico. Ele ficou rico competindo com a máfia italiana ao distribuir em Nova York heroína com alto grau de pureza. A droga vinha da Ásia camuflada em aviões do Exército americano envolvidos nas ações da Guerra do Vietnã. A história serviu de inspiração para o filme O Gângster, com o ator Denzel Washington encarnando Frank Lucas.
Drogas, aeronaves da FAB e viagens presidenciais formam um coquetel antigo também no Brasil. Em 1999, a Polícia Federal desvendou um esquema de tráfico internacional que utilizava aviões da Força Aérea. Em 1994, Ariosto Franco, sobrinho do então presidente, Itamar Franco, morreu em Cartagena, na Colômbia, na véspera da viagem do tio para a Cúpula Ibero-Americana. O laudo do IML colombiano identificou cocaína em suas vísceras e apontou a droga como uma das causas de seu infarto. Vítima de falhas de segurança nos protocolos da FAB, que permitiram o embarque da enorme quantia de drogas sem ao menos submeter os passageiros ao raio X na base aérea, o presidente Bolsonaro prometeu cortar cabeças na volta do Japão.
Publicado em VEJA de 3 de julho de 2019, edição nº 2641
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