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Meu endereço: a calçada

Eliana Toscano, 47 anos, formada em letras, morou na Cracolândia e ajuda na recuperação de dependentes químicos

Por Eliana Toscano
Atualizado em 15 jul 2019, 15h23 - Publicado em 14 jun 2019, 07h00

Onde vou dormir hoje à noite? Essa tem sido a minha preocupação diária no último ano. Sou formada em letras — falo inglês e francês —, tenho duas filhas e fui casada com o pai delas por vinte anos. Uma série de acontecimentos, porém, me fez virar moradora de rua. E foi essa situação que me levou a trabalhar numa área da prefeitura paulistana que atende pessoas na Cracolândia.

Acabei na rua principalmente por causa dos problemas que eu tinha com meu ex-marido. Vivi um relacionamento abusivo. As agressões não eram físicas, mas verbais, psicológicas e, digamos assim, patrimoniais. Em qualquer discussão, ele me xingava e me ameaçava, dizendo que iria tirar minhas filhas. Eu me sentia presa ao casamento não só pelas meninas — que hoje têm 18 e 13 anos de idade —, mas também pelo fato de meu marido ser o provedor da casa.

Passei a trabalhar, em 2018, em uma instituição pública responsável pelo atendimento a moradores de rua na Cracolândia. Sempre tive o impulso de tentar ajudar indivíduos em situação de vulnerabilidade. Durante o trabalho na Cracolândia conheci o Fábio, sem-teto e dependente químico. Fui atraída pelo seu companheirismo e comecei a permanecer mais tempo ao lado dele. Apaixonamo-nos.

Em paralelo, em casa eu me via cada vez mais como mera serviçal do meu então marido. Não demorou para que eu preferisse ficar mais horas com o Fábio na rua do que em minha residência. Inicialmente, passava a semana inteira fora e só voltava para os sábados e domingos. Até que tomei a decisão de me separar e permanecer na rua, de vez. Minhas filhas continuaram a morar com o pai. Só saí de casa quando senti que elas estavam seguras.

Existe um enorme preconceito em relação a quem acaba na Cracolândia. Fui criada num ambiente católico e, apesar de não seguir a religião, um dos ensinamentos básicos que carrego comigo é “amai-vos uns aos outros”. Há maldade nas pessoas, mas acredito que ninguém é irrecuperável. Por isso, diante de uma coletividade como a da Cracolândia, é preciso esforço para observar cada um. Acabei lá pelos motivos que expus, contudo não sou a única com meu perfil a ir parar na rua. Pessoas de todas as classes sociais vivem na Cracolândia. Ali conheci ex-detentos, mas também ex-executivos. Eu mesma, quando jovem, já tinha vivido um tempo na rua, pelo vício em cocaína, do qual me livrei há tempos. Sempre me acusam de usar drogas, entretanto continuo limpa. O Fábio é usuário de crack, e estamos trabalhando com a redução de danos. Ele vem diminuindo a quantidade que consome, e temos a meta de superação total. No nosso plano de mudança de vida, ele quer viver longe da Cracolândia, para que seja cada vez mais difícil cair em tentação.

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Foi em dezembro que eu soube que havia uma vaga na Secretaria Municipal de Direitos Humanos para um cargo comissionado responsável pela intermediação entre os serviços públicos e os moradores de rua. Imaginava que não teria chance alguma, no entanto me candidatei. Para minha surpresa, fui selecionada — e deparei com outra dificuldade. Não conseguiria abrir conta-salário em um banco, nem sequer começar no emprego se não comprovasse endereço. E eu não tinha. Inventei, então, um para mim: Avenida Duque de Caxias, 367. No complemento, inseri: “Calçada”. Depois de explicar a situação, acabei aceita.

Quando dei início ao meu trabalho, ganhei reconhecimento de estranhos. Minha família, porém, tem dificuldade de me aceitar e, em especial, ao meu companheiro. Mas estou em processo de transição e atualmente durmo em um centro de acolhida. Eu e o Fábio agora batalhamos para ter o nosso teto.

Depoimento dado a Jennifer Ann Thomas

Publicado em VEJA de 19 de junho de 2019, edição nº 2639

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