JÔ SOARES
Humorista, entrevistador e escritor
“Viver não é tão importante, o importante é a comédia”
Ao longo das próximas páginas, em balões como este, VEJA publica frases ditas por Jô
Há um modo de medir os humores de um país: enxergá-lo pela lupa de seus artistas mais perspicazes, capazes de traduzir as dores e amores do cotidiano. O Brasil seria outro, menor e mais triste, um imenso vazio, sem José Eugênio Soares, o Jô. Por meio de uma extensa galeria de personagens de televisão, depois com as entrevistas em seus programas de talk show, que invadiam as madrugadas, e na literatura, descobrimos um pouco de cada um de nós e como a passagem do tempo molda a sociedade. Jô via tudo antes de todo mundo. O Capitão Gay, super-herói homossexual que usava um uniforme cor-de-rosa e andava sempre acompanhado de seu fiel escudeiro, Carlos Suely, hoje soaria politicamente incorreto — naquele tempo, início dos anos 1980, era um grito de alerta. Na antessala da democracia de uma nação maltratada pela ditadura, entre 1976 e 1982, em O Planeta dos Homens, Jô se ajoelhava para interpretar o Reizinho, um monarca de estatura baixa que governava um país pequeno, mas com um ego enorme. Era saudado por seus súditos com “Sois rei! Sois rei! Sois rei!”. Com a infinita capacidade de rir de si mesmo, sinônimo de inteligência, apesar da aparente arrogância, Jô distribuía sabedoria com generosidade. Servia de régua moral do rumo a tomar, e não errava. Ele morreu em 5 de agosto, aos 84 anos.
ADIVINHE QUE VEIO PARA JANTAR
SIDNEY POITIER
Ator
Com Uma Voz nas Sombras, de 1963, Sidney Poitier foi o primeiro negro a levar o Oscar de melhor ator. Ele emprestou seu suave carisma a Homer Smith, um pedreiro desempregado que, durante uma viagem, encontra em uma fazenda remota nos Estados Unidos um grupo de freiras alemãs que vê nele um enviado dos céus para construir uma igreja na região desértica. Em 1967, estrelaria No Calor da Noite, primeiro vencedor da estatueta de melhor filme com um protagonista negro e uma trama de teor racial — a trajetória de um detetive chamado a desvendar um caso numa cidade habitada por racistas. Seus personagens transformavam a raiva reprimida em respostas quase sempre silenciosas e determinadas, sem nenhuma violência. Ele morreu em 6 de janeiro, aos 94 anos.
ELZA SOARES
Cantora
A carreira de Elza Soares pode ser resumida em um diálogo logo antes de sua primeira apresentação no rádio. Foi em meados de 1953, no programa Calouros em Desfile, apresentado por Ary Barroso, que tentou ridicularizar a roupa que ela usava e perguntou: “De que planeta você veio, minha filha?”. Elza respondeu: “Do planeta fome”. Em seguida, ela interpretou a canção Lama e ganhou nota máxima. Filha de uma família muito pobre, lutou sempre contra o racismo e o machismo — inclusive o de seu mais conhecido par, Mané Garrincha, que chegou a agredi-la, alcoolizado. Ícone das lutas femininas, virara lenda em vida. Se Acaso Você Chegasse, clássico de Lupicínio Rodrigues na voz da sambista, ecoará para sempre. Cantou até morrer, aos 91 anos, em 20 de janeiro.
MILTON GONÇALVES
Ator
Nos palcos, nas telas de cinema ou nas telinhas de TV, o mineiro Milton Gonçalves foi sempre um ator de sete instrumentos. Impunha a seus personagens candura e sinceridade, humor e altivez, tudo a um só tempo, e com uma voz rouca inigualável. Poucos intérpretes brasileiros souberam passar sentimentos tão genuínos apenas com o olhar e o sorriso. Quem há de esquecer do Zelão das Asas, de O Bem-Amado, de 1973, ou do médico Percival, de Pecado Capital, de 1975? Mas orgulhava-se mesmo era do severo líder sindicalista Bráulio, de Eles Não Usam Black-Tie, que levou ao teatro, com a direção de Gianfrancesco Guarnieri, e depois ao cinema, pelas mãos de Leon Hirszman. Morreu em 30 de maio, aos 88 anos.
IDEIAS NA CABEÇA
JEAN-LUC GODARD
Diretor de cinema
Em meados dos anos 1990, uma reportagem do The New York Times apresentou da seguinte forma a entrevista com um dos criadores da Nouvelle Vague francesa: “Ouvir Jean-Luc Godard é muito parecido com assistir a seus filmes — cortes rápidos, non sequiturs, muita filosofia, intimidades ocasionais, estranhas obsessões e uma narrativa nada óbvia. As perguntas provocam reações, mas não necessariamente respostas. As palavras fluem livremente, mas seu significado é muitas vezes obscuro. E, como em muitos de seus filmes, o fim pode estar no começo e o meio pode estar no fim”. Godard subverteu os padrões para reinventar o cinema em clássicos instantâneos e incômodos como Acossado, de 1960, e Alphaville, de 1965. Morreu em 13 de setembro, aos 91 anos, de suicídio assistido.
“É bem melhor pensar sem falar do que falar sem pensar”
JEAN-LOUIS TRINTIGNANT
Ator
A Nouvelle Vague, conduzida por Godard (leia acima) e François Truffaut, não existiria sem os atores e atrizes que deram rosto ao movimento — em interpretações quase sempre contidas, feitas mais de pausas do que de ruídos, de tensão e frases pausadas. Jean-Louis Trintignant merece espaço nobre no grupo que levou ao cinema a revolução criativa dos anos 1960. Ele teve sua carreira lançada junto com a de Brigitte Bardot no filme de 1956 E Deus Criou a Mulher. Recebeu o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes por Z, de Costa Gavras, em 1969. Morreu aos 91 anos, em 17 de junho.
A TRADUÇÃO PELO CINEMA
ARNALDO JABOR
Diretor e comentarista político
Na maturidade, Arnaldo Jabor ficou mais conhecido como comentarista da TV Globo e do jornal O Globo. Ele merece ser lembrado, contudo, por alguns de seus filmes. Toda Nudez Será Castigada, de 1973, é a mais competente adaptação de Nelson Rodrigues para as telas, retrato do moralismo bocó de parte da classe média. Poucos cineastas sabiam lidar simultaneamente com o ritmo, a montagem e a edição musical de seus trabalhos — além de domínio total dos atores, como maestro. Ao alinhavar as duas pontas de sua carreira, ele disse: “As coisas que eu escrevo têm alguma coisa de cinema. Porque eu sou meio ator de televisão também. Tem uma coisa de cinema no sentido de que é a tentativa de captar o que é que está por trás da notícia óbvia”. Morreu em 15 de fevereiro, aos 81 anos.
BRENO SILVEIRA
Diretor
O diretor Breno Silveira dizia ser um “cara emotivo”. “Se não for para chorar no fim do filme, então nem faço”, brincou em entrevista a VEJA em 2021. Ele tinha rara intimidade com a câmera, para muito além do domínio técnico: dono de um olhar afiado para as mazelas do Brasil e de sensibilidade arrebatadora, via seus personagens como seres humanos dignos de empatia, e não como objetos de estudo sociológico. Esse talento explodiu em seu filme de estreia, o sucesso de bilheteria 2 Filhos de Francisco — que, em 2005, arrebanhou mais de 5 milhões de espectadores e pranto em profusão no escurinho do cinema ao contar a história da dupla sertaneja Zezé Di Camargo e Luciano. Ele morreu em 14 de maio, aos 58 anos.
“O filme sempre começa na hora certa, principalmente quando você chega atrasado”
JAMES CAAN
Ator
E quem há de esquecer uma das figuras mais cintilantes e dúbias de O Poderoso Chefão, de 1972, o clássico dos clássicos de Francis Ford Coppola? Sonny Corleone, o filho mais velho do mafioso Don Corleone (Marlon Brando), protagoniza uma disputa de poder sangrenta entre famílias mafiosas quando um gângster planeja estabelecer um grande esquema de vendas de narcóticos em Nova York. O papel coube a James Caan, indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante (ele perderia para o genial e emocionante Joel Grey como o mestre de cerimônias de Cabaret). Caan morreu em 26 de março, aos 82 anos.
OLIVIA NEWTON-JOHN
Atriz e cantora
São raros os intérpretes que, para além de representarem seu tempo, antecipam uma onda — foi o caso de Elvis Presley, no fim dos anos 1950, e dos Beatles, em meados dos anos 1960. Ainda mais escassos são os artistas capazes de inaugurar modismos mudando de estilo. A inglesa radicada nos Estados Unidos Olivia Newton-John foi dessa estirpe. Revelada ao mundo por meio das canções country, ela explodiria em 1978 de mãos dadas com o gênero rockabilly em Grease, filme que muita gente finge não gostar. Em 1981, deu uma outra pirueta com o som disco de Physical, ao misturar pitadas de sexo com humor. Morreu em 8 de agosto, aos 73 anos.
WILLIAM HURT
Ator
A altivez de William Hurt, entre a timidez e a convicção, atraiu a atenção de diretores de Hollywood para papéis de personagens com dilemas imensos e dores de consciência. Foi com o Luís Molina de O Beijo da Mulher-Aranha, de 1985, dirigido pelo argentino radicado no Brasil Hector Babenco, que ele entraria para a galeria dos grandes nomes do cinema. O trabalho, inspirado a partir de um livro de Manuel Puig, pôs numa mesma cela Molina, um prisioneiro gay, e um militante político interpretado por Raul Julia (1940-1994). Hurt ganharia naquele ano o Oscar. Ele morreu em 13 de março, aos 71 anos.
MONICA VITTI
Atriz
Não há como dissociar Monica Vitti de quatro filmes de Michelangelo Antonioni, com quem foi casada: A Aventura (1960), A Noite (1961), O Eclipse (1962) — a chamada “trilogia da incomunicabilidade, em preto e branco — e o colorido O Deserto Vermelho (1964). A postura aparentemente fria de Monica, que aprendera seu ofício no teatro, entre peças de Shakespeare e Molière, rapidamente virou ícone daquela revolução — Antonioni se alimentava de planos longuíssimos e dos silêncios, muitos silêncios, para evidenciar o desconforto de seus personagens com a aborrecida vida burguesa. Ela morreu em 2 de fevereiro, aos 90 anos.
TRAÇOS ELEGANTES…
JEAN-JACQUES SEMPÉ
Desenhista
O francês Jean-Jacques Sempé nasceu no seio de uma família pobre. Apanhava do padrasto e era ignorado pela mãe. Adolescente, fugiu para Paris com um caderno de desenhos. De sua infância subtraída, ele diria, nasceriam as ideias para a criação das aventuras do Pequeno Nicolau — personagem criado em parceria com o escritor René Goscinny (um dos pais de Asterix). Em narrativas bem-humoradas e traços elegantes, o menino dos livros vive as dores do crescimento na escola, as férias na praia, o nascimento do irmãozinho, a vida como ela é. Se na Europa e no Brasil Sempé esteve atrelado a Nicolau, nos Estados Unidos ele conquistou fama por meio dos delicados desenhos para as capas da revista The New Yorker. Ele morreu em 11 de agosto, aos 89 anos.
ELIFAS ANDREATO
Ilustrador
Houve um tempo, quando as bolachas de vinil giravam nas vitrolas sem parar, no qual antes mesmo das descobertas musicais compravam-se discos de MPB pelas capas — e elas eram, invariavelmente, de Elifas Andreato. Em mais de quarenta anos de carreira, o ilustrador nascido no Paraná e radicado em São Paulo fez desenhos para a embalagem de mais de 300 LPs, de Adoniran Barbosa a Chico Buarque, de Paulinho da Viola a Martinho da Vila, de Clementina de Jesus a Clara Nunes. Seu traço, mistura de realismo com tons oníricos, é a cara de um tempo, os anos 1970 do Brasil engolido pela ditadura militar e que só conseguia respirar por meio de canções — ou de desenhos coloridos como os de Andreato, facilmente reconhecíveis. Ele morreu em 29 de março, aos 76 anos.
…E A ELEGÂNCIA DO TEXTO
LYGIA FAGUNDES TELLES
Escritora
A precocidade era uma régua permanente na vida de Lygia Fagundes Telles. Aos 20 anos, em 1938, a filha de um procurador público e de uma pianista escreveu seu primeiro livro, a coletânea de contos Porão e Sobrado. Nas rodas literárias da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo — na sua turma havia seis mulheres e 94 homens —, cedo aprendeu a incomodar o mundo machista. “Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos, agora somos nós que vamos dizer o que somos”, escreveu em seu livro de memórias, A Disciplina do Amor, lançado em 1980. O lema a acompanhou por toda a vida, na literatura que a tornaria respeitada, mas também nas bancas jurídicas, como procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, carreira que seguiria de mãos dadas com a trilha artística. Em 1954, com Ciranda de Pedra, o relato de uma mulher oprimida pelo marido, ela passou a ser vista com atenção e incômodo, ao cutucar as unanimidades e a misoginia. Em Antes do Baile Verde, de 1970, passeou por temas tabus, como a insatisfação conjugal e o adultério. Em As Meninas, de 1973, o relato de vida de três amigas universitárias, cutucou simultaneamente os militares da ditadura e os conservadores atávicos. Escrevia sobre política, mas queria mesmo era tratar de relações amorosas. Morreu em 19 de abril, aos 103 anos.
MANIFESTO NO CORPO
ISSEY MIYAKE
Estilista
O japonês Issey Miyake não inventou a simplicidade nem tampouco a elegância — mas para quem vestiu ou apenas viu nas passarelas e revistas de moda suas criações a sensação é de que foi ele quem fez nascer esses dois atributos indispensáveis à vida. Miyake foi o mais matemático dos grandes estilistas, atrelado a formas geométricas do bem vestir. O genioso Steve Jobs, que entendia de limpeza de traços, sempre econômicos, pediu ao costureiro que esboçasse algo que ele pudesse exibir nas celebradas apresentações da Apple. E então, o suéter de gola alta preta virou um tótem, chique como ele só. Miyake morreu em 5 de agosto, aos 84 anos.
“Faça piada velha para público novo e piada nova para público velho”
THIERRY MUGLER
Estilista
O minimalismo das passarelas nos anos 1970 não combinava com a efervescência do mundo. Mas então surgiram as linhas do estilista francês Thierry Mugler, que dominaria as coleções, chegaria ao cinema e aos clipes de música. Mugler revirou o estilo do avesso. Misturou quadrinhos com tecnologia, aplicou uma paleta de cores inacreditável e colou a seus modelos um tanto de sadomasoquismo. Em seus shows, nos anos 1980 e 1990 — sim, shows! —, desfilaram nomes como Grace Jones, Jerry Hall e Linda Evangelista. Ele morreu em 23 de janeiro, aos 73 anos.
A REINVENÇÃO DO MUNDO
MIKHAIL GORBACHEV
Político
Poucos líderes do século XX, e de qualquer outro período, tiveram tanto impacto em seu tempo. Foi uma avalanche. Debaixo de um par de palavras em russo — glasnost e perestroika — o império antagonista dos Estados Unidos começaria a ruir, embora o anseio primevo de Mikhail Gorbachev fosse apenas o da reforma. Glasnost (transparência) pretendia aproximar a população das decisões do Kremlin e combater a corrupção entre os apparatchik (burocratas). Perestroika (reestruturação) era um tranco na centralização econômica imposta pela Revolução de 1917. Os dois movimentos acelerariam o desmonte da União Soviética. Gorbachev morreu em 30 de agosto, aos 91 anos — e com ele um dos momentos decisivos da história da humanidade.
SHINZO ABE
Político
Primeiro-ministro do Japão durante dois períodos, Shinzo Abe foi pilar de transformações. De 2006 a 2007, ele procurou restaurar parte do militarismo e do orgulho do país, em postura razoavelmente bem-sucedida. Depois, de 2012 a 2020, pôs em prática a chamada “abenomics”, o conjunto de medidas que propunha recuperar a economia japonesa a partir de três pilares: estímulo fiscal, flexibilização monetária e reformas estruturais. Funcionou. Abe morreu em 8 de julho, aos 67 anos, vítima de um atentado a tiros em Nara, próximo a Kyoto. O crime ainda está sendo investigado.
MADELEINE ALBRIGHT
Diplomata
Filha de refugiados checos que chegaram aos EUA em 1948, depois de terem fugido dos nazistas ao ser deflagrada a II Guerra e dos soviéticos que ocupariam o país com o armistício, num périplo de quase dez anos, Madeleine Albright foi a primeira mulher a chefiar a Secretaria de Estado americana, posto encarregado das relações internacionais. Ela foi nomeada pelo presidente democrata Bill Clinton em 1997 e permaneceu na função até o início de 2001, com a posse do republicano George W. Bush. Hábil conciliadora, havia quem a tratasse como possível candidata à Presidência — uma impossibilidade, dado ter nascido na Checoslováquia. Morreu em 23 de março, aos 84 anos.
OS ANOS DE CHUMBO
“Sou gordo demais para pedir a volta do regime”
DOM CLÁUDIO HUMMER
Religioso
Sentado ao lado de Jorge Mario Bergoglio, em 13 de março de 2013, na contagem dos votos do conclave que escolheria o sucessor de Bento XVI, o então cardeal arcebispo de São Paulo, dom Cláudio Hummes, aproximou-se ao pé do ouvido do amigo. Eis o que diria Francisco: “Quando o caso começava a tornar-se um ‘pouco perigoso’, ele animava-me. E, quando os votos atingiram dois terços, surgiu o aplauso, porque fora eleito o papa. Ele me abraçou, me beijou e disse: ‘Não te esqueça dos pobres’. E aquela palavra ficou na minha cabeça: os pobres, os pobres. Logo depois, associando com os pobres, pensei em Francisco de Assis”. Foi assim, por inspiração do brasileiro, que nasceu a alcunha do pontífice jesuíta. Hummes morreu em 4 de julho, aos 87 anos.
NEWTON CRUZ
Militar
O general Newton Cruz, envolvido com o atentado a bomba no Riocentro, em 1981, era conhecido pela sinceridade. Já aposentado, ao ser indagado a respeito do período de chumbo que representou, ele diria, com desfaçatez: “Ditadura, propriamente, não era. Era um regime autoritário forte. Agora, que não era uma democracia, não era. Não existe democracia em que o presidente pode editar ato institucional. Eu acho que a revolução escolheu bem a hora de entrar, mas não a de sair”. Ele morreu em 15 de abril, aos 97 anos.
CABO ANSELMO
Dedo-duro
José Anselmo dos Santos, conhecido por Cabo Anselmo, ganhou destaque em 1964, ao liderar um movimento de marinheiros de baixa patente contra os oficiais da Marinha. Não demorou para se aproximar do presidente João Goulart. Descobriu-se, depois do golpe, que era agente duplo. Chegou a ser enviado para treinamento em Cuba, mas já agia como dedo-duro. Entregou até mesmo sua noiva, que, grávida, foi brutalmente torturada e morreria numa prisão militar. Anselmo viveria anos escondido. Reapareceu publicamente no fim dos anos 1990. Morreu em 16 de março, aos 80 anos.
CULTURA É CIVILIZAÇÃO
SERGIO PAULO ROUANET
Diplomata
Em 1991, como titular da pasta da Cultura do governo de Fernando Collor, o diplomata Sergio Paulo Rouanet elaborou um projeto de lei que levaria seu nome — a Lei Rouanet autorizava empresas e pessoas físicas a descontar do imposto de renda valores repassados a iniciativas culturais, como shows de música, exposições de arte, preservação do patrimônio histórico, livros etc. Ela ajudou a alimentar a produção artística brasileira, apesar das falhas, apesar dos defeitos que pediam frequente reformulação. Mas era um bem. Durante o governo de Bolsonaro, virou moda atacar a lei — como se ela fosse um problema, na contramão da obtusidade intelectual do governo. Rouanet morreu em 3 de julho, aos 88 anos.
MINHA VOZ, NOSSAS VIDAS
GAL COSTA
Cantora
Um modo de entender a grandeza indizível de Gal Costa, que cantava com a voz e o corpo, é lembrar da letra de uma canção feita para ela por Caetano Veloso: “Minha voz, minha vida / Meu segredo e minha revelação / Minha luz escondida / Minha bússola e minha desorientação / Se o amor escraviza / Mas é a única libertação / Minha voz é precisa / Vida que não é menos minha que da canção”. Ela morreu em 9 de novembro, aos 77 anos.
ERASMO CARLOS
Compositor e cantor
O que seria do rei Roberto Carlos sem Erasmo, o “gigante gentil” de 1,93 metro, a figura doce e irrequieta de clássicos como É Preciso Saber Viver, Sentado à Beira do Caminho e Quero que Vá Tudo pro Inferno? Sentado à beira do caminho, o Tremendão moldou o rock brasileiro depois da explosão um tanto ingênua do iê-iê-iê da jovem guarda, no fim dos anos 1960 — enquanto Roberto trilhou o caminho das canções românticas e melosas, ele não quis nem saber, e seguiu mais visceral do que nunca. Era um modo de beber de seu próprio passado, no bairro da Tijuca, no Rio: na juventude, aprendeu a tocar violão com Tim Maia e cantava com Jorge Ben Jor, mas apenas quando não estava acompanhando os jogos do Vasco da Gama, uma de suas paixões. Em 2021, em entrevista a VEJA, ele resumiu seu estado de espírito: “Eu me vejo como um menino. Por dentro, a minha mente é de um menino. Agora, a parte física que não me obedece”. Erasmo Carlos morreu em 22 de novembro, aos 81 anos.
ROLANDO BOLDRIN
Ator, cantor e apresentador
E agora, como enxergar e ouvir o Brasil profundo, tão rico em causos e canções, sem Rolando Boldrin? Nos últimos dezessete anos, o ator, cantor e compositor apresentou um adorável programa exibido pela TV Cultura, de São Paulo: Sr. Brasil. Passou a vida revelando artistas escondidos e recuperando joias esquecidas. Morreu em 9 de novembro, aos 86 anos.
OLHAR PRECISO
ORLANDO BRITO
Fotógrafo
Nos anos 1960, Orlando Brito se transformou no mais destacado repórter fotográfico de um Brasil que acabara de mergulhar na ditadura militar e só voltaria à democracia 20 anos depois. Pelas lentes de Brito passaram todos os presidentes da República — de Castello Branco a Jair Bolsonaro. É possível contar a trajetória do país pelas lentes de Brito, entre o espanto e o incômodo. Em texto escrito para o livro Poder, Glória e Solidão, uma antologia lançada em 2002, Brito definiu seu trabalho: “Cada protagonista da história deixa suas digitais impressas na própria história. (…) Fotografias não têm culpa. São derivadas de algo existente, são reproduções de alguma coisa visível. Não se fotografa o nada”. Ele morreu em 11 de março, aos 72 anos.
À NOITE TUDO ACONTECIA
DANUZA LEÃO
Escritora
Para Danuza Leão, o dia parecia ter mais do que 24 horas — mas era nas madrugadas que ela ganhava oxigênio para viver. Na juventude, foi modelo. Casou-se com o jornalista Samuel Wainer e dali tomou gosto pelos bastidores das notícias e do poder. Feminista antes da hora, deixou o primeiro marido para viver com o compositor Antonio Maria — depois se casaria com outro jornalista, Renato Machado. Sem receio de andar na contramão, desfilava inteligência. Nos anos 1980 escreveu um best-seller, Na Sala com Danuza, em que deu dicas de como ver o mundo com sinceridade e elegância. Morreu em 22 de junho, aos 88 anos.
“Quem nasce no mundo é mundano?”
RÉGINE CHOUKRON
Cantora e empresária
Houve um tempo pré-histórico, muito antes das redes sociais, no qual o melhor modo de ver e ser visto era frequentar uma das duas dezenas das badaladas casas noturnas da empresária francesa Régine Zylberberg, depois Choukron, mas que se tornou conhecida mesmo apenas pelo primeiro nome, Régine — associado a um apóstrofo e o “s”, virou uma marca inescapável dos anos 1970 e início dos 1980. O Régine’s do Rio de Janeiro, São Paulo, Nova York e Paris, e de tantas outras grandes cidades, rapidamente virou sinônimo de vida noturna. Antes, na França, tivera celebrada carreira como cantora. Morreu em 1º de maio, aos 92 anos.
DE ONDE VIEMOS E PARA ONDE VAMOS
RICHARD LEAKEY
Paleontólogo
Saberíamos menos de nós mesmos, como seres humanos, não fosse o trabalho do paleontólogo e conservacionista queniano Richard Leakey. Ele foi o responsável por encontrar os restos mortais dos primeiros hominídeos conhecidos até hoje. Ao escavar o Lago Turkana, na fronteira entre Etiópia e Quênia, as equipes lideradas por Leakey fizeram descobertas fundamentais. Em 1972, encontraram os primeiros crânios de Homo habilis, com cerca de 1,9 milhão de anos. Em 1984, localizaram o mais completo exemplar de um Homo erectus, de 1,5 milhão de anos. Graças a Leakey o mundo hoje aceita a ideia, já predominante, de os primeiros humanos terem surgido no continente africano. Ele morreu em 2 de janeiro, aos 77 anos.
DAVID BOGGS
Engenheiro
Deve-se ao empenho e à inventividade do americano David Boggs uma das criações mais decisivas do século XX, a ethernet, protocolo dominante para as redes de escritórios e empresas. O engenheiro elétrico ajudou a criar a tecnologia capaz de conectar computadores a impressoras e outros dispositivos, atalho para a internet como a conhecemos hoje. Sem o trabalho de Boggs, talvez não pudéssemos enviar e-mails, visitar um site por meio do celular e trabalhar a distância para cumprir os protocolos sanitários exigidos pela pandemia de Covid-19. Foi o líder de uma revolução. Boggs morreu em 19 de fevereiro, aos 71 anos.
LUC MONTAGNIER
Virologista
Em 1983, o francês Luc Montagnier, do Instituto Pasteur, isolou pela primeira vez o vírus que causava a aids. Em 2008, ele e a pesquisadora Françoise Barré-Sinoussi foram laureados com o Prêmio Nobel de Medicina pela descoberta. Apesar da honraria e de uma trajetória repleta de títulos científicos, Montagnier se manifestou de forma negacionista e contrária à ciência em diversas ocasiões. Chegou a afirmar que antibióticos poderiam tratar casos de transtorno do espectro autista.Recentemente, deu declarações contra as vacinas, inclusive as opções disponíveis contra a Covid-19. Incorretamente, ele afirmou que os imunizantes poderiam levar ao aparecimento de novas variantes. Morreu em 8 de fevereiro, aos 89 anos.
“O ser humano aprende a falar com cerca de 3 anos, a ouvir, nunca”
FRANK DRAKE
Astrônomo
O astrônomo e astrofísico americano Frank Drake teve um único objetivo em setenta anos de carreira: encontrar vida em outros planetas. Foi ele quem transformou uma ideia risível em atividade séria. No fim da década de 50, quando trabalhava no Observatório Nacional de Radioastronomia, em Green Bank, nos Estados Unidos, Drake começou a se indagar sobre que tipo de utilidade teria a gigantesca antena, um panelão de 25 metros de largura que acabara de ser construído. Depois de uma sucessão de cálculos, intuiu que, se outra geringonça semelhante existisse em um sistema a alguns anos-luz de nós, ambos os equipamentos poderiam se comunicar por meio de sinais de rádio. O contato ainda não foi feito. Drake morreu em 2 de setembro, aos 92 anos.
A VIDA ALÉM DO ESPORTE
ISABEL SALGADO
Jogadora de vôlei
Antes de o vôlei feminino conquistar duas medalhas olímpicas de ouro, antes de o masculino subir três vezes ao ponto mais alto do pódio, houve Isabel Salgado, a Isabel do Vôlei. Garota de Ipanema, cedo começou a jogar pelo Flamengo. Teve quatro gestações ao longo da carreira, e ser mãe nunca a atrapalhou. “Foi uma mulher à frente de seu tempo”, disse o treinador José Roberto Guimarães. Suas cortadas de direita eram imparáveis. Suas opiniões em torno de comportamento e política, mercuriais. Em 1982, foi capa de VEJA como “A Musa do Esporte”. Morreu em 16 de novembro, aos 62 anos.
EDER JOFRE
Pugilista
Instado a citar alguns de seus ídolos no boxe, o peso-pesado americano Mike Tyson listava um punhado de americanos — e Eder Jofre. “Quando penso no Brasil, penso em Jofre”, disse mais de uma vez. Nos anos 1960, a mais respeitada revista da modalidade, The Ring, o instalou no nono lugar de um rol dos maiores boxeadores da história, em qualquer categoria. Foi campeão mundial dos galos e dos penas. Fez 81 lutas, com 75 vitórias (52 nocautes), quatro empates e apenas duas derrotas, por pontos. Jofre deixou um outro belo legado: doou seu cérebro para pesquisas científica. Ele morreu em 2 de outubro, aos 86 anos.
Publicado em VEJA de 28 de dezembro de 2022, edição nº 2821