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Marcelo Rubens Paiva e o pai: ‘Tormento que não acaba’

O filho de Rubens Paiva, ex-deputado morto no DOI-Codi do Rio, escreve sobre o desespero de pensar no pai pendurado em um pau de arara. Os maus-tratos nos porões foram revelados ao Brasil por VEJA em 1969

Por Da Redação
21 set 2013, 19h48

Coragem para denunciar

10 de dezembro de 1969

Depois de publicar, na edição de 3 de dezembro de 1969, a capa “O presidente não admite torturas” — citando um porta-voz do Planalto segundo o qual Emílio Garrastazu Médici determinara o fim do uso de violência “no combate à subversão” –, Veja voltaria ao assunto na semana seguinte de forma corajosa. Sob o título “Torturas”, aplicado acima de uma ilustração antiga que mostrava uma sessão de suplícios, a revista fez denúncias explosivas. Na reportagem, VEJA detalhava as circunstâncias da morte de Chael Charles Schreier, ex-estudante de medicina, militante da VAR-Palmares (organização comandada por Carlos Lamarca), depois de ser espancado por agentes da repressão.

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TRECHO: “As circunstâncias estranhas de sua morte levavam a crer que o caso Chael era a primeira prova real de morte violenta durante um interrogatório policial. (…) Com marcas de autópsia, costuras no tórax e nas pernas e sinais de sangue no nariz, o corpo tinha ainda manchas roxas no rosto e na barriga. Um dos primos de Chael, ao sair da sala de purificação, falou: ‘Ele apanhou como um cavalo’. Nesta frase parece estar resumida dramaticamente a história das horas passadas por Chael quando se encontrava preso. Por enquanto, a frase também encerra a história até que uma possível investigação do Ministério da Justiça a reabra.”

• Leia a reportagem na íntegra

Dias depois, o caso teve uma reviravolta. Jussara Joeckel, perita da Polícia Civil, disse que não havia sinais de estupro ou abuso nem fissuras nos órgãos genitais da garota. A Secretaria da Segurança Pública informou que o sêmen encontrado nas roupas íntimas de Tayná não era compatível com o dos presos, Sérgio Amorim, 22 anos, Paulo Cunha, 25, Adriano Batista, 23, e Ezequiel Batista, 22. Eles contaram a integrantes da Comissão de Direitos Humanos da OAB que confessaram o crime após ter sido torturados na delegacia em que foram “convidados” a depor. Um teve perfuração intestinal, depois de empalado. Outro ficou surdo, com o tímpano rompido, e tem suspeita de osteomielite no pulso. Uma câmera de segurança registrou a imagem da adolescente a caminho do parque. Não há provas de que ela esteve por lá.

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A tortura sempre existiu. Apesar de ser considerada crime inafiançável, continua existindo. Existiu em arenas romanas, nas masmorras da Idade Média, nos castelos e pelourinhos. Foi patrocinada por imperadores, reis e papas, ditadores de direita e de esquerda. Está lá, sempre presente, quando um estado precisa subjugar seus inimigos. Por que a tortura nunca acaba? E serve para quê?

Para apressar, com eficiência duvidosa, a conclusão de uma investigação criminal. Para encontrar desaparecidos (como a garota Tayná), comparsas, mandantes. Para desbaratar quadrilhas. Como vingança. Para destroçar um indivíduo, reforçar quem manda, dar senso de camaradagem a uma comunidade fechada, como um satânico rito grupal primitivo. Para unir sob uma bandeira fraca. Para humilhar. Como escreveu o marquês de Beccaria, citado na histórica matéria de VEJA sobre o assunto, publicada em 1969, cujos trechos nos martelam com insistência: “Quero inspirar-vos um ódio de vós mesmos; ordeno-vos que vos torneis vossos próprios acusadores e digais enfim a verdade ao meio das torturas que dilacerarão os músculos e quebrarão os ossos”.

O torturador, que tem pai, filho, esposa, amigos, vida pública, aquele que faz compras, viaja de férias, se irrita no trânsito, paga impostos, poupa, vota, protesta, enfim, que planeja o futuro, pensa no seu gesto? Ou apenas cumpre ordens? Executa uma rotina trivial sem distinguir o certo do errado? Vive na banalização do mal sem questionar moralmente os efeitos do que pratica?

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As respostas levam a uma direção: a tortura não é apenas a ferramenta de um poder instável, autoritário, que necessita da violência impensável para se firmar, ou uma aliança sádica entre facínoras, estadistas psicopatas, lideranças de regimes que se mantêm pelo terror, e seus comandados. Muitas vezes, aparenta ser uma ação de um grupo isolado. Não. A tortura é patrocinada pelo estado. Até mesmo regimes democráticos que priorizam o bem social, defendem a liberdade e a igualdade, até eles promovem a tortura.

O regime do libertador e herói de guerra general francês Charles de Gaulle torturou inimigos argelinos. O regime parlamentar inglês, com seus súditos da rainha, torturou acusados de ligação com o Exército Republicano Irlandês (IRA). Criou técnicas e instrumentos, como a “geladeira” — sala branca blindada, com variações de temperatura, luz intermitente e música 24 horas, em que um preso fica isolado. O DOI-Codi do Rio de Janeiro tinha uma dessas. Até os Estados Unidos, a nação defensora do ideal do mundo livre, torturam na sua guerra particular, ou vingança pessoal, contra o que designam terror.

Não é o agente fulano, o oficial sicrano, quem perde a mão. É a instituição, e sua rede de comando hierárquica, que tortura. A nação patrocinadora da dor infligida. O poder, emanado do povo ou não, suja as mãos de sangue.

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No dia 20 de janeiro de 1971, seis agentes da Aeronáutica invadiram a minha casa no Rio com metralhadoras e levaram meu pai, Rubens Beyrodt Paiva, ex-deputado do PTB, cassado pela ditadura em 1964, para a Base Aérea do Galeão. Uma enviada do Chile, a professora Cecília Viveiros de Castro, presa no aeroporto, havia ligado pouco antes para ele, dizendo que lhe trazia cartas e documentos de exilados brasileiros. Meu pai auxiliava, como muitos no Brasil, a fuga de perseguidos pela ditadura, escondia lideranças banidas, socialistas ou comunistas, em casa, ajudava financeiramente estudantes cassados. Como José Serra, ex-presidente da UNE, um maltrapilho esfomeado que perambulava por Paris depois de expulso do Brasil.

Meu pai apanhou assim que chegou à III Zona Aérea. Levou uma coronhada de uma submetralhadora, desferida pelo brigadeiro João Paulo Burnier, que estourou sua carótida, segundo a professora. Ambos foram transferidos no assoalho de um carro no dia seguinte para a sede do DOI-Codi, no quartel do I Exército. Foram obrigados a ficar em pé de capuz com as mãos para cima durante horas.

Cecília o ouviu gritar, soletrar seu nome inúmeras vezes. Foi torturado até a morte. Há 42 anos convivo com essa informação bloqueada por uma censura nos pensamentos. Quando, por algum deslize, aparece na imaginação a imagem do meu pai em um pau de arara, ela logo é reprimida. Não combina. Não dá para visualizar. Meu pai era um homem calmo, bom, engraçado, frágil. E vaidoso. O que mais lembram dele? Da gargalhada, que fazia tremer a casa. Fumava charutos. Gostava de comer do melhor. De viajar. Gostava de Paris. Chegou a morar lá, aos 20 anos, a uma quadra do Sena. Passou um ano na Europa, com os três irmãos, em 1947, para testemunhar a reconstrução de uma terra arrasada, o que mudou a sua visão de mundo.

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Falava inglês, francês e alemão. Haroldo de Campos foi seu amigo de escola. Antonio Cândido, um dos seus mentores políticos. Foi sócio de Samuel Wainer no Última Hora. Antonio Callado, os irmãos Millôr e Helio Fernandes, Fernando Gasparian, Fernando Henrique Cardoso, Paulo Francis e Bocayuva Cunha eram presenças constantes na mesa de pôquer. Danuza Leão, a bailarina Dalal Achcar e Lygia Fagundes Telles faziam parte da rodinha. Como o diplomata Marcílio Marques Moreira e o banqueiro Walther Moreira Salles. Imaginar este sujeito boa-praça, aos 41 anos, nu, em um pau de arara, levando choques aos gritos de “Fala, comunista, safado! Terrorista!”, apanhando até a morte… Não dá. Não encaixa.

Como não dá para imaginar o sóbrio, calvo e sorridente jornalista Vladimir Herzog em um pau de arara. Nem outros dois jornalistas, Rodolfo Konder e Paulo Markun, nem universitários, nem professores (como os meus do colegial, Benauro Roberto de Oliveira, de história, e Luiz Roncari, de literatura). Nem a presidente Dilma. Muito menos Carlos Alexandre Azevedo, que se matou em fevereiro, aos 40 anos — tinha apenas 1 ano e 8 meses quando foi arrancado de sua casa e torturado na sede do Deops paulista, onde seus pais, o jornalista Dermi Azevedo e a pedagoga Darcy Andozia Azevedo, ficaram presos.

Relatos dizem que meu pai pedia água a todo momento, enquanto era torturado. No final, banhado em sangue, repetia apenas o seu nome. Por horas. “Rubens Paiva. Rubens Paiva. Rubens Paiva…” Quem detalhou isso para Veja (edição de 3 de setembro de 1986) foi Amilcar Lobo, ex-médico, que o viu no DOI-Codi do Rio de Janeiro: “Ele era uma equimose só. Estava roxo da ponta dos cabelos à ponta dos pés. (…) Eu nunca havia presenciado um quadro desse tipo. Aquele homem levara uma surra como eu nunca vira. Fiquei na cela com ele uns quinze minutos. Estava consciente. Não gemia. Disse só duas palavras: Rubens Paiva”.

Se a tortura não faz sentido, é ineficiente, por que então é presença cativa e devastadora na nossa história? Graças à impunidade garantida por lei. Também bancada pelo estado, que a quer aliada, que não se livra do moedor de carne, pois interessa tê-la por perto. O governo Obama não fechou Guantánamo. Você se lembra de algum agente brasileiro acusado de tortura ter sido preso? Quem torturou até a morte o meu pai foi absolvido pela Lei da Anistia. Foram depois promovidos e aposentados. Sabe quem são? Amilcar Lobo citou o nome do coronel José Ney Fernandes Antunes. O tenente Armando Avólio Filho, do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), foi quem lhe disse depois que meu pai fora morto. Francisco Leite Chaves, procurador-geral da Justiça Militar, acusou o coronel Ronald José da Motta Batista Leão, o subtenente Ariedisse Barbosa Torres, o major Riscala Corbage, o segundo-sargento Eduardo Ribeiro Nunes e o capitão de cavalaria João Câmara Gomes Carneiro como responsáveis pela tortura e morte do meu pai. Um ofício do dia 22 de janeiro de 1971 encontrado pelo jornalista Jason Tércio indica o major Francisco Demiurgo Santos Cardoso como “major-chefe do DOI/I Ex”.

As agendas do meu pai foram entregues ao major José Nogueira Belham, segundo ofício encontrado recentemente na casa de outro oficial do DOI, coronel Molinas Dias. De Belham, sei até o endereço, no bairro do Flamengo, no Rio. O jornal Correio Braziliense descobriu recentemente que seu filho, Ronaldo Martins Belham, é diretor adjunto da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Um herdeiro da máquina de moer carne no cérebro do poder.

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