Desde que retornou à cadeira presidencial, em seu terceiro mandato, Lula não esconde sua pretensão de recuperar o protagonismo que já experimentou em tempos nos quais o país era embalado pela onda das commodities e Barack Obama, o então ocupante da Casa Branca, dizia: “Ele é o cara”, referindo-se, em 2009, ao brasileiro que usufruía de imenso prestígio no exterior. Com os acentuados giros que o mundo deu depois dos dois primeiros mandatos do petista, entre 2003 e 2010, o bordão “O Brasil voltou”, hoje repisado por plateias tomadas de militantes petistas e dito em tom calculadamente polido por integrantes do Itamaraty, é uma aspiração que exige trabalho duro para se concretizar de fato. Na avaliação do governo, o regresso ao picadeiro global envolve bases bem estabelecidas com os vizinhos da América Latina, região da qual Lula é líder quase que natural, dada a envergadura do país. Contudo, ele não vem tendo uma vida tão fácil quanto se poderia supor ao observar o mapa, dominado pelo vermelho das nações com mandatários à esquerda, no espectro político.
A questão por detrás da imagem rubra é que ela abriga agora nuances que tornam o percurso de Lula menos previsível, já que está longe de traduzir uma unidade de pensamento. Hoje, é preciso mais atenção do que no passado recente para atrair aliados. Para isso, ele recentemente viajou à Colômbia, sob o leme do ex-guerrilheiro Gustavo Petro, e, na sexta-feira 17, desembarca no Chile, onde se encontrará com Gabriel Boric, um jovem exemplar da esquerda, capaz de criticar colegas do mesmo espectro — o que fez ao disparar contra Nicolás Maduro, o governante autocrata da Venezuela.
Os espinhos da estrada levam Lula a tom menos ideológico com Boric. À mesa no Palacio de La Moneda, ele levará uma outra agenda que muito interessa ao Brasil — o Consenso de Brasília, documento lavrado na cúpula entre as doze nações da América do Sul, em 2023, de tom genérico, resultado de posições antagônicas. O governo brasileiro quer conferir mais concretude ao texto, uma iniciativa conjunta para lidar com temas como lavagem de dinheiro, e, sobretudo, se aproximar do distante Boric. “As diferenças enriquecem a relação entre os dois presidentes e pode-se dizer que as convergências são a prova de existir uma alternativa de esquerda moderna”, disse a VEJA Alberto van Klaveren, o chanceler chileno.
Sob a moldura de um planeta rachado pela polarização, Lula esbarra em um fenômeno global e muito pronunciado em solo latino-americano: a ascensão de uma direita que, diferentemente da esquerda, se faz mais articulada, especialmente quando caminha para o populismo. Um dos fatos mais incômodos para a atual gestão petista é a migração do vermelho ao azul na Argentina, agora nas mãos do imprevisível Javier Milei, que a toda hora lança farpas em direção ao governo brasileiro e já forma um círculo com os também direitistas Lacalle Pou, do Uruguai, e Santiago Peña, do Paraguai. Não que as relações diplomáticas e comerciais estejam tremulando, mas esse trio com o qual o Brasil constitui o Mercosul não quer nem ouvir falar da tão almejada aliança ideológica em torno do sonho lulista de um fortalecido Sul Global, quinhão do mundo em desenvolvimento que faria frente à velha ordem mundial. “O momento não é propício para a construção de iniciativas dessa natureza”, diz o ex-embaixador Marcos Azambuja.
Ao contrário de suas outras duas passagens pelo poder, Lula, influenciado por seu assessor para assuntos internacionais, Celso Amorim, entende que agora precisa se mexer para não correr o risco de se isolar em seu próprio quintal. Sinais recentes sustentam a necessidade de agir, como a reunião organizada por empresários da região, em Bariloche, que juntou Milei, Peña e Lacalle Pou, deixando Lula de fora. Antes, o presidente uruguaio azedara o clima durante encontro dos chefes de Estado do Mercosul, ao agitar a bandeira de um acordo bilateral com a China, que excluiria os parceiros comerciais do bloco. Milei não se cansa de desdenhar das relações multilaterais desejadas por Lula, apostando em alinhamento direto com os Estados Unidos. Sem proximidade com os mandatários da região, antes um trunfo, o plano por ora é deixar os negócios a cargo do Itamaraty. “A busca de consensos passou a acontecer mais em torno de questões práticas e concretas e menos na formulação de grandes ideais compartilhados, como observado em um passado recente”, afirma Julio Bitelli, embaixador brasileiro em Buenos Aires.
Se existe um razoável (e não mais que isso) consenso na região é o de que Maduro só traz dissabores, especialmente para Lula, que trilha uma delicada linha na qual prefere silenciar sobre os desmandos do companheiro de longa estrada, mas se vê pressionado a se pronunciar. É assunto sensível, que pode custar caro ao governo brasileiro, uma vez que a comunidade internacional está com os olhos voltados para as eleições venezuelanas de julho. O regime bolivariano saiu-se com uma desculpa para inviabilizar a candidatura de um nome forte, María Corina Machado, e também vetou sua substituta sem explicações, sobrando a vaga para um desconhecido diplomata, Edmundo González. Lula chegou a pôr panos quentes (“a oposição não pode ficar chorando”). O Itamaraty, porém, teve de subir ligeiramente o tom, ao externar “preocupação”.
Os afagos a Maduro, herdeiro de Hugo Chávez (1954-2013), de quem Lula era amigo, se explicariam, segundo integrantes do Itamaraty, pela tentativa de manutenção da paz no entorno, mas o que dizer das ameaças de Maduro de anexar a região de Essequibo, farta em petróleo e pertencente à Guiana? “Essa postura em relação à Venezuela faz com que o mundo enxergue o Brasil como um síndico que não administra seu próprio jardim”, diz Paulo Velasco, professor de relações internacionais da Uerj.
Desde sempre uma região fincada na instabilidade e ciclicamente enredada em crises, a América Latina que Lula encara hoje é território tomado de armadilhas — e a perícia para transitar entre elas será decisiva para ganhar força. No conflagrado Equador, o recém-eleito direitista Daniel Noboa desencadeou uma crise de grandes proporções com o México, governado pelo esquerdista López Obrador, o AMLO, ao mandar invadir a embaixada mexicana em Quito para capturar um oponente político que ali se asilava. Na Colômbia, país visto pela diplomacia brasileira como “vizinho distante”, vislumbram-se chances de estreitar elos, mas Petro trepida, perdendo apoio com medidas impopulares, e ainda por cima faz questão de discordar publicamente de Lula na nevrálgica discussão sobre a exploração de petróleo na Margem Equatorial, à qual o brasileiro é favorável e que o colombiano considera antiecológica.
No início dos anos 2000, impulsionados pela alta do preço de matérias-primas, Lula e seus aliados Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador), Néstor Kirchner (Argentina) e Chávez, com quem ele chegou a competir pela liderança regional, se alinharam em torno de uma agenda que pretendiam tornar exemplar para países em desenvolvimento. Criaram assim a Unasul, que se fiava no plano de integrar o continente. Aparelhado pela Venezuela, o organismo murchou depois que Jair Bolsonaro determinou a saída do Brasil, em 2019, num movimento seguido por cinco nações. O atual governo determinou seu regresso e assumiu a coordenação, na esperança de reagrupar os países sob novo comando. “Sempre haverá discordâncias políticas, mas se cada vez que mudar o governo a gente esfacelar a região não chegaremos a lugar nenhum”, diz Gisela Padovan, secretária de América Latina e Caribe do Itamaraty. Paira ainda sobre a cruzada de Lula uma questão crucial: até onde vale o Brasil apostar tantas fichas num pedaço do globo que vem perdendo relevância econômica e geopolítica? “Estamos a reboque dos acontecimentos, sem defendermos nossos próprios interesses de forma objetiva e com a ideologia se sobrepondo ao pragmatismo”, afirma o ex-embaixador Rubens Barbosa. Superar essa barreira talvez seja o maior de todos os desafios de Lula 3.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2024, edição nº 2892