Mostrar que um homem poderoso pode ser condenado por violência doméstica neste país é uma grande vitória. Não só minha, mas de todas as mulheres. Não importa qual seja a pena, mas que a justiça tenha sido feita e o meu nome, honrado. Meu agressor foi considerado culpado por unanimidade e terá de prestar serviços comunitários. Até se chegar a uma decisão dessas, o processo é muito cruel. Tem o sofrimento físico e psicológico e a vítima é submetida a um julgamento moral, que eu chamo de imoral. Embora eu seja uma pessoa pública e nunca tenha me envolvido em escândalos, não escapei de ser exposta e desacreditada. Fui acusada pelo meu ex-companheiro de cinco anos (o empresário Lírio Parisotto) e por gente ligada a ele. Criaram inclusive contas no Instagram com o propósito de dizer que eu havia armado para dar o golpe do baú, que era mais fácil ter combinado o valor do michê, que eu não valia um real. Hoje, a sensação é de um grande alívio pela verdade ter vindo à luz. Esse é um tipo de ferida, porém, que deixa marcas para o resto da vida. Aquele soco ainda dói.
A decisão de quebrar o silêncio não é fácil para ninguém. Uma mistura de frustração, vergonha e medo. Em se tratando de duas pessoas conhecidas, eu sabia que a repercussão seria gigantesca e teria de estar preparada. Ainda hoje fico nervosa só de voltar à noite de 21 de maio de 2016. Depois de um jantar com amigos em Nova York, no qual o meu ex-companheiro foi extremamente grosseiro por uma bobagem, temi pelo que viria. Ele se irritou ao lembrar que fora confundido com meu ex-marido. Ao chegar totalmente alterado ao apartamento, começou a dar tapas e socos na minha cara e a chutar minhas pernas. Num só golpe, ele me jogou no sofá e pressionou meu corpo com tanta força que quebrei quatro costelas. Tive muito medo de morrer.
Como acontece com inúmeras mulheres que sofrem violência entre quatro paredes, essa não foi a primeira vez que ele me surrou. Em outra ocasião, por um motivo banal, fui agredida e, ao cair numa mesa de centro, rompi o ligamento de um dedo. Envergonhada, disse para todos que havia machucado na porta do carro. Esse é um tipo de crime complexo porque, frequentemente, o agressor é uma pessoa que a vítima ama. Era o meu caso. Depois disso tudo, não sinto raiva, pena, nada por ele. Desde aquela noite, só o vi em audiências, mas nunca mais trocamos uma palavra. Meu sentimento e o dos meus filhos é de decepção.
Por mais doloroso que tenha sido, minha vida mudou. Abraçar a causa me fez exorcizar as dores e dar um norte a outras mulheres. Virei uma ativista num país que ocupa o quinto lugar em número de feminicídios. Embora a vítima não tenha culpa, ela costuma se condenar: “Não devia ter dito isso, usado tal vestido ou rebolado daquela forma”. Eu era embaixadora dessa bandeira para uma marca de cosméticos, mas viver a violência na pele dá outra percepção. Meu Instagram virou uma espécie de central de socorro. Recebo dezenas de relatos de mulheres por mês e encaminho para um grupo de promotoras e delegadas. Passei a dar palestras. Falei no Senado Federal e em países como Estados Unidos, França e Índia. Sofro de uma doença autoimune (vitiligo) que, sob stress, desencadeia outras. Desenvolvi insônia, problemas no fígado, nos rins e diabetes. Como mexi com gente importante, ainda temo que algo possa me acontecer. Não dava para ficar parada. Minha mãe e minha avó também foram vítimas de violência, e me vi na obrigação de quebrar o ciclo. Sigo a luta na Justiça pelo reconhecimento da união estável que tive com meu ex-companheiro. Mas só de o STF ter confirmado a condenação do meu agressor já me fez sentir reconstruída, fortalecida. Não namorei mais ninguém desde então. Pode ser que agora consiga abrir meu coração.
Luiza Brunet em depoimento dado a Sofia Cerqueira
Publicado em VEJA de 9 de dezembro de 2020, edição nº 2716