Imagine uma pessoa falar português com seu/sua amigue sem usar pronome que distinga homem (ele) de mulher (ela) e dando preferência ao indefinido ile. Na conversa diles também caem fora os adjetivos e flexões verbais que sejam indicativos de sexo. As frases que abrem este texto, assim como as conhecidas canções que ilustram estas páginas, foram modificadas para traduzir uma nova forma de se comunicar, até pouco tempo atrás limitada a nichos e bolhas identitárias, mas que tem avançado por diálogos e textos nunca antes alcançados: a chamada linguagem neutra, que deleta diferenças de gênero, suprimindo os artigos A e O e pondo em seu lugar um X, uma arroba ou um E.
Esse jeito de falar, que tem origem nos não binários — pessoas que não se reconhecem nem como homem, nem como mulher, um grupo recém-saído das sombras —, é mais um produto da aceitação com que sobretudo os jovens de agora encaram a diversidade em seu sentido mais amplo. Sob o argumento da não discriminação e do respeito a quem não se reconhece nos tradicionais escaninhos de gênero, a linguagem não binária vem sendo aos poucos incorporada à vida em sociedade e já comparece em anúncios, ambientes acadêmicos, produções artísticas, discursos de políticos e no mundo corporativo — uma sacudida que, como não poderia ser diferente nestes dias, agita as labaredas de uma discussão de acentuado matiz ideológico. “Em pelo menos um século, essa é a mais intensa mudança no campo da sintaxe já proposta à língua portuguesa e a de maior visibilidade”, afirma Raquel Freitag, vice-presidente da Associação Brasileira de Linguística.
O advento da linguagem neutra, um interessante debate que transcorre mundo afora, ganha especial efervescência em países polarizados, encaixando-se sob o guarda-chuva das divergências entre conservadores (que são contra) e progressistas (a favor) — ainda que haja gente considerada de mente aberta se opondo ao ile e companhia por enxergar aí um exagero no leque do politicamente correto. No Brasil, a contenda foi parar no Supremo Tribunal Federal, onde o ministro Edson Fachin suspendeu por liminar uma lei aprovada em Rondônia que proíbe a linguagem sem gênero nas escolas e nos editais de concursos públicos. “A chamada linguagem neutra ou inclusiva visa a combater preconceitos linguísticos retirando vieses que usualmente subordinam um gênero ao outro”, sustentou Fachin. O ministro Nunes Marques, indicado pelo governo Bolsonaro, pediu que a ação fosse analisada pela Corte presencialmente e ela irá a plenário em votação que poderá fincar um precedente para todo o país, onde o tema pega fogo.
Um decreto na mesma linha, este em vigor em Santa Catarina, também chegou ao STF. No apagar das luzes de 2021, foi a vez de o governo de Mato Grosso do Sul sancionar uma lei que bane os vocábulos não binários. Adicionando sua bolsonaríssima colher de pau ao tacho, o secretário da Cultura, Mario Frias, baixou portaria vetando a presença de termos neutros em projetos da Lei Rouanet. Bolsonaro, o próprio, já reclamou que “a linguagem neutra dos gays vai estragando a garotada”. Recentemente, o presidente disparou contra Fachin: “Que país é esse? Que ministro é esse? O que ele tem na cabeça?”.
“Infelizmente, a sociedade funciona de forma binária. Por isso é tão importante chamarmos as pessoas pelos pronomes nos quais elas se reconhecem.”
Emma Corrin, 26 anos, atriz
Transformações no modo de se exprimir são comuns e espelham comportamentos e anseios da sociedade. No começo do século passado, quando o Brasil sonhava ser a França, palavras afrancesadas inundaram a linguagem brasileira, fenômeno que se repetiria com expressões em inglês décadas mais tarde. No embalo do politicamente correto, especialmente vigoroso nestes tempos, riscou-se do cotidiano verbos como o antissemita “judiar” e o racista “denegrir”, bem como expressões pejorativas como “mulata”, que tem a mula como origem, e “aleijado”, derivado de aleijão, deformidade. Agora, o bastão está nas mãos dos movimentos pró-diversidade, que historicamente se levantam antes dos outros pela mudança — como ocorreu quando grupos de libertação da mulher ocuparam as ruas nos anos 1960, ainda que sob uma nuvem de desconfiança e desdém, que foi se dissipando. Se a neutralidade na fala, mais um produto com a marca registrada da cartilha PC, conseguir de fato tornar mais inclusiva a língua portuguesa, estará prestando um serviço em matéria de tolerância — desde que, nessa empreitada, o pleito não ganhe contornos dogmáticos e passe a funcionar como uma indesejável ferramenta de exclusão. “A linguagem neutra deve incluir sem jamais segregar”, enfatiza a linguista Raquel Freitag, que arremata: “Como mulher, quero seguir sendo chamada no feminino.”
O canal mais formal de remodelamento de um idioma é o das reformas ortográficas — no caso do português, houve duas no século passado e mais uma em 2016, implantadas na forma de leis, com o objetivo de adequar a grafia à pronúncia e padronizá-la nos países de língua portuguesa. Mas a maior parte das mudanças brota mesmo espontaneamente, de maneira coletiva, como o vossa mercê, que virou vosmicê, até se transformar em você, e a expressão “a gente” como sinônimo de “nós”. Transformações, digamos, ideológicas, como a linguagem neutra, são mais raras e abrem uma fresta para a polêmica. “Não acho que essa variação possa enriquecer o nosso idioma, a linguagem culta, mas, na medida em que um conjunto de palavras é exaustivamente repetido por um certo grupo, ele passa, sim, a fazer parte do seu vocabulário”, pontua Evanildo Bechara, imortal da Academia Brasileira de Letras e um dos maiores gramáticos do país. Da língua falada, o salto para a linguagem chamada oficial se concretiza quando um termo, enfim, ingressa no calhamaço do dicionário. “Uma vez convertido em verbete, ele ganha legitimidade e passa a ser usado em textos formais, mesmo que isso não garanta que haja consenso a seu respeito entre os estudiosos”, explica a linguista Vivian Cintra, da USP.
“Os pronomes com os quais me identifico são they/them (ile/dile). Entendo que haverá muitos erros e desentendimentos, mas tudo o que peço é que, por favor, tentem.”
Sam Smith, 29 anos, cantor
De fato, a linguagem neutra gradativamente começa a ser dicionarizada. O americano Merriam-Webster define they e them como opção de tratamento a he/him (masculino) e she/her (feminino). Na Suécia, foi formalizado o pronome hen, criado pela comunidade transgênero para designar pessoas não binárias. Já o francês Petit Robert foi mais longe na audácia: incluiu o neutro iel, sem tirar nem o il (ele), nem o elle (ela). Os aliados do presidente Emmanuel Macron, que empreende uma cruzada contra excessos de novidades vindas de fora que estariam minando a cultura francesa, chiaram, pondo mais lenha nessa ideológica fogueira que ferve em toda parte. “Esse tipo de iniciativa prejudica a língua e desune os que a falam”, criticou o deputado François Jolivet, lançando à mesa um raciocínio comum aos que são contra. “Definir palavras que descrevem o mundo nos ajuda a compreendê-lo melhor”, defendeu o diretor do dicionário, Charles Bimbenet.
Nas redes sociais, que ajudam a medir o alcance das coisas, o assunto se encontra em ebulição: só no Twitter, foram contabilizados no ano passado 2,1 milhões de postagens com termos modificados para abolir o gênero. Um levantamento inédito obtido por VEJA mostra que, em 2021, o interesse dos brasileiros pela expressão “linguagem neutra” no Google cresceu 3 230%, comparado com 2019. Celebridades, como sempre, têm sua parcela de responsabilidade na divulgação, ao informar em seus perfis nas redes a preferência para que se refiram a elas pelo pronome they (eles, em inglês), em vez de he (ele) ou she (ela) — uma opção que, por sinal, independe da sexualidade. Já manifestaram esse desejo, entre outros, as atrizes Emma Corrin, a jovem Diana de The Crown, Amandla Stenberg, de Jogos Vorazes, e o cantor Sam Smith. Elliott Page, ator transexual que se chamava Ellen e fez a transição para o sexo masculino, atende por he/they. Miley Cyrus, que se declara não binária, ainda faz suspense sobre seus pronomes.
Açoitada por conservadores e puristas, a fala neutra tem como ponto a favor o reconhecido “machismo” da língua portuguesa, onde o genérico masculino é obrigatório, mesmo que a palavra terminada em “o” seja uma única entre várias — distorção presente, por exemplo, em “a mesa, a cadeira, a poltrona, as gravuras e o sofá foram recolhidos e vendidos”. “Mesmo que a intenção não seja a de privilegiar um determinado gênero, estudos comprovam que, cognitivamente, quando falamos dessa forma, a imagem que sobressai é a masculina”, observa Vivian Cintra. Esse fator foi determinante para a carioca Liz Andrade, 19 anos, estudante de letras da UFRJ e em paz com seu gênero feminino, decidir abraçar os novos pronomes e a não binariedade do idioma — não sem dificuldades, aliás. “Antes de começar uma conversa, vejo como a pessoa se refere a si mesma ou pergunto como quer ser chamada”, diz ela. “O maior desafio não é pôr em prática a linguagem neutra, mas me aceitarem por usá-la”, reclama, mesmo circulando em um ambiente onde a neutralidade ganha espaço na sala de aula e em trabalhos acadêmicos.
Enquanto a bandeira da mudança linguística é empunhada por uns e depreciada por outros, seu uso, ainda que não amplamente disseminado, vai conquistando terreno. No Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a gerente de ações educativas, Renata Sampaio, 33 anos, e sua equipe recebem grupos de visitantes com um sonoro “Boa tarde a todas, todos e todes”. Muitos se espantam, o que Renata acha bom. “Quando acontece, aproveitamos a brecha para falar sobre diversidade e salientar a importância de sermos inclusivos”, conta. A fala neutra também está adentrando o universo da literatura, sobretudo a voltada à comunidade LGBTQIA+ e, como não poderia deixar de ser, o das séries, que ocuparam o lugar das novelas como espelhos da sociedade. Termos de linguagem neutra ou debates sobre a questão aparecem, entre outras, em Todxs Nós e And Just Like That (sequência de Sex and the City), da HBO, e Ridley Jones, da Netflix (veja abaixo).
Das ruas para a TV
A linguagem neutra começa a ser tema de séries de alta visibilidade, inclusive direcionadas para a faixa etária infantil
AND JUST LIKE THAT…
A sequência de Sex and the City traz a personagem não binária Che Diaz, que cutuca as questões de gênero enquanto faz comédia no palco
TODXs NÓS
O seriado brasileiro mergulha sem medo no tema da identidade de gênero e responde com bom humor e didatismo a dúvidas linguísticas daqueles que estão fora da bolha não binária
RIDLEY JONES
Alvo da ira conservadora, o desenho conta a saga de uma menina e seus amigos, entre eles um dinossauro que fala “todes” e um búfalo não binário que tentam proteger um museu
Mostrando fluência no vocabulário inclusivo e atento a um discurso que soa bem a cada vez mais nichos, o presidente da Argentina, Alberto Fernández, já se dirigiu a seus conterrâneos como “argentines”. O britânico Boris Johnson, em plena reunião do G7, declarou que o mundo precisa ser reconstruído a partir do princípio da neutralidade de gênero. No mundo corporativo, a Japan Airlines agora dispensa o “Ladies and gentlemen” e cumprimenta os passageiros com o inclusivo “Welcome, everyone”. O gigante de seguros Lloyds e o fundo de investimento Virgin Management adotam os pronomes de preferência de seus funcionários, assim como o banco Goldman Sachs, que foi além e montou um manual de orientação para o uso de termos não binários. “Trata-se de uma questão de respeito. Em cinco anos, a estimativa é que 65% da força de trabalho seja formada por profissionais LGBTQIA+”, ressalta Pri Bertucci, CEO da Diversity BBox, que presta consultoria nessa área a empresas como Uber e Facebook.
Reformar um idioma de fora para dentro, remexendo hábitos, depende acima de tudo de os termos caírem no gosto popular. “É ingenuidade achar que os gramáticos e os dicionaristas dão a palavra final”, afirma o jornalista e escritor Sérgio Rodrigues, autor de Viva a Língua Brasileira!. “O idioma sempre foi um campo de batalha, no qual quem define vencedores é o povo”. Se todes vão falar a linguagem neutra, só o tempo dirá, mas as labaredas do debate já põem a humanidade a refletir sobre um mundo mais diverso, e essa postura é civilizatória, excelente e justa.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773