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Justiça é no feminino

A condenação de ex-companheiros agressores reconstitui a dignidade de mulheres vítimas da violência — e é fundamental para deter a escalada do feminicídio

Por Luiza Brunet*
Atualizado em 4 jun 2024, 15h48 - Publicado em 22 fev 2019, 07h00
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  • O reconhecimento da Justiça na punição de maridos ou ex-companheiros agressores é capaz de devolver dignidade a mulheres vítimas da violência doméstica. É um instrumento necessário na superação de traumas profundos, fundamental para uma nova fase da vida. Com a verdade reconhecida pelos tribunais, a vítima tem a chance de superar talvez o mais covarde e complexo dos crimes: a violência praticada por alguém com quem ela vive ou viveu uma relação amorosa íntima e intensa.

    Na quinta-feira 14, o Tribunal de Justiça de São Paulo condenou em segunda instância, por unanimidade, o agressor e ex-companheiro que cometeu esse crime contra mim há quase três anos. A violência da qual fui vítima na madrugada de 21 de maio de 2016, três dias antes do meu aniversário de 54 anos, teve grande repercussão pública. Além da agressão física contra mim, houve o julgamento moral e imoral pelo qual passei. Fui desacreditada. Fui exposta. Meus filhos sofreram. Com a decisão unânime dos desembargadores, experimentei pela primeira vez um forte sentimento de reparação. Eu me senti reconstituída e reconstruída como pessoa. Senti a justiça sendo feita.

    Minha história não deve ter importância para as pessoas pelo que tem de única e singular. Ou pelo sofrimento atroz que me causou. O que torna relevante para o país o crime cometido contra mim é o que ele tem em comum com milhares de casos de mulheres violentamente agredidas pelo companheiro. A condenação de um agressor é uma vitória para todas as mulheres. Acredito que seja um sentimento compartilhado por todas que vivenciaram essa experiência e que viram finalmente o Poder Judiciário reconhecer o grande dano causado na vida de cada uma.

    Vivemos uma epidemia sistêmica de violência contra a mulher em todos os estados e classes sociais. O Brasil figura em quinto lugar no ranking mundial. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de assassinatos chega a 4,8 para cada 100 000 mulheres. A escalada do feminicídio precisa ser detida. Em 2019, foram 33 assassinatos só nos primeiros dias de janeiro. Corremos perigo. Uma mulher é vítima de feminicídio a cada 36 horas em São Paulo, com 148 assassinatos registrados em 2018. No Rio de Janeiro, uma mulher é agredida a cada doze minutos.

    Barbaridades parecem não ter limite. A tragédia mais recente, com requintes de crueldade, é a da paisagista Elaine Caparróz, de 55 anos, espancada por quatro horas em sua casa por um homem com quem se correspondia pelas redes sociais havia oito meses. O estudante Vinícius Serra, de 27 anos, foi preso por tentativa de feminicídio (leia a reportagem).

    Em 2018, chegaram à Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) 92 323 denúncias. São agressões que muitas vezes acontecem na frente dos filhos. Histórias terríveis. Inexplicáveis. Muitas dessas mulheres não tiveram tempo sequer de ir à Justiça. Ou morreram com medidas protetivas instituídas que foram desobedecidas. Outras vivem formas de prisão. Não se sentem encorajadas para romper a barreira do medo, da culpa ou da vergonha. Por isso estão sob um risco ainda maior.

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    Temos de dar um basta. É preciso que a sociedade se una em torno dessa causa. Mulheres e homens precisam declarar enfaticamente que não vão mais tolerar essa realidade. Os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário devem agir com veemência. O governo federal e os governos estaduais devem se posicionar. Senhor Sergio Moro, o que esperar do Ministério da Justiça? É necessário um esforço conjunto de promotores, juízes, assistentes sociais e psicólogos, policiais, autoridades nacionais, estaduais e municipais para formar uma grande rede de segurança para a proteção das vítimas. Devemos garantir a eficácia das medidas protetivas instituídas pela Lei Maria da Penha. Temos de expandir exemplos como a experiência em Pernambuco com o uso de tornozeleira eletrônica por agressores para o monitoramento do distanciamento exigido.

    Campanhas de prevenção e combate à violência precisam encorajar as mulheres. A denúncia é um passo crucial. A primeira etapa é quebrar o silêncio. Levei dias para tomar essa decisão. Algumas mulheres demoram anos, ou nunca tomam essa medida. A motivação deve vir de uma análise profunda. É preciso pesar na balança a angústia e o sentimento de desrespeito. Um companheiro jamais pode ter um comportamento dessa ordem com sua companheira. A violência doméstica é um crime complexo. Não é simples montar um processo legal. Muitas vezes a vítima retoma a relação com o agressor, acreditando que tudo vai mudar e voltar a ser como antes. Os agentes competentes devem entender essa complexidade. As vítimas precisam desse tempo e dessa compreensão. Só assim estarão efetivamente protegidas.

    “Se você é vítima de violência em uma relação abusiva, pergunte a si mesma: que valor eu tenho?”

    Convido as mulheres a esta reflexão. Se você é vítima de uma violência de qualquer ordem em uma relação abusiva, faça a si mesma a seguinte pergunta: que valor eu tenho? Sofrer qualquer forma de violência não é justo. E, quando alguma coisa não é justa, é preciso que a justiça seja feita. É necessário buscar a Justiça para que ela ocorra. Não podemos ficar esperando. Ela não virá até você. É importante deixar de lado a vergonha, o medo e a culpa. Ao sentar-se na frente de um promotor ou de uma promotora, de um delegado ou de uma delegada, conte a sua história. Você não fez nada de errado. Quem fez foi o seu companheiro. E, se você se sentir questionada na sua verdade, entenda que esse profissional pode estar despreparado. Não recue nem desista. Posicione-se. Somos vítimas, mas não devemos nos vitimizar.

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    Sempre acreditei que a verdade da gente é a nossa melhor arma. Você sabe o que viveu. E, por anos, será capaz de lembrar cada detalhe. Quando uma mulher faz uma denúncia, essa verdade ganha legitimidade. Há todo um processo natural da Justiça, que demora. Isso nos angustia. Queremos que a violência que sofremos seja reconhecida rapidamente. Mas esse é o tempo de que a Justiça precisa. Acredite. A persistência nessa crença é essencial para seguir em frente até que a reparação aconteça.

    A experiência que vivi me despertou para essa causa, da qual serei uma vigilante. No dia em que recebi a notícia do veredicto do meu caso, por coincidência eu estava em uma casa da Justiça. Participava de uma reunião de trabalho com o secretário de Justiça do Estado de São Paulo, Paulo Dimas Mascaretti, discutindo ações para prevenir e combater nesse estado a violência doméstica. Estavam comigo as promotoras Gabriela Manssur e Valéria Scarance, a lutadora Érica Paes, a doutora Albertina Duarte, coordenadora estadual de Políticas Públicas para a Mulher, e a juíza Ana Paula Bandeira Lins. Mencionei quão simbólico era estar ali no dia em que senti o poder reparador da justiça feita. Emocionei-me com a salva de palmas puxada pelo secretário.

    Podemos dar uma virada, a partir de uma intervenção decisiva para que a violência contra a mulher não seja mais tolerada. Do latim justitia, o termo justiça remete à qualidade do que está em conformidade com o que é direito. Justiça é substantivo feminino. Justiça seja feita às mulheres.

    * Luiza Brunet, modelo e empresária, é ativista no combate à violência contra a mulher

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    Publicado em VEJA de 27 de fevereiro de 2019, edição nº 2623

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