Em julho passado, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), se envolveu em um incidente com um grupo de brasileiros no aeroporto internacional de Roma. Há duas versões para o episódio. Segundo o relato do magistrado, ele foi xingado e seu filho, Alexandre Barci, agredido. Já os acusados — o empresário Roberto Mantovani, sua mulher, Andrea Munarão, e o genro, Alex Zanatta — confirmam que houve a discussão, mas negam que a agressão tenha ocorrido. A Polícia Federal abriu um inquérito para apurar o caso e, para confrontar as versões, requisitou as imagens das câmeras de segurança do aeroporto italiano. O material chegou ao Brasil há dois meses, mas, em vez de ajudar a esclarecer, por enquanto só ampliou a confusão. Para olhos leigos, as imagens não permitem um veredito. Para os agentes encarregados da investigação foi possível concluir apenas que o filho foi alvo de uma “aparente agressão” consumada por um “aparente tapa”.
A vagueza das conclusões gerou um embate interno na Polícia Federal. Por determinação do diretor-geral do órgão, a corregedoria abriu um processo disciplinar para apurar a conduta do perito Willy Hauffe Neto, presidente da Associação dos Peritos Criminais Federais (APCF). Motivo: a entidade divulgou uma nota questionando o fato de a análise das imagens do aeroporto ter sido realizada por um agente, o que, além de incomum, comprometeria a qualidade e a isenção do trabalho. “É preocupante que procedimentos não periciais possam ser recepcionados como se fossem ‘prova pericial’, uma vez que não atendem às premissas legais, como a imparcialidade, suspeição e não ter, obrigatoriamente, qualquer viés de confirmação, que são exigidas dos peritos oficiais de natureza criminal.”
Antes de determinar a instauração da sindicância, o delegado Andrei Rodrigues, diretor-geral da PF, fez chegar aos peritos que eles estariam ajudando a “defesa dos agressores” ao pôr em xeque os métodos utilizados na investigação. Em manifestação apresentada à corregedoria na quinta-feira 19, Hauffe alegou que as ponderações sobre a falta de perícia no caso envolvendo o ministro Alexandre de Moraes é uma posição de toda a categoria e que a abertura do procedimento disciplinar representa uma “interferência” no funcionamento da associação, ao constranger suas lideranças, que apenas cumpriram o dever funcional. A PF diz que decidiu não solicitar a perícia técnica nas gravações por considerar que não há dúvida sobre a autenticidade das imagens.
“A polícia fez apenas um storyboard do que se queria ver, como um viés de confirmação. A questão é que, se houvesse uma perícia, talvez sequer fosse possível atestar a existência de um tapa, uma agressão física de verdade”, disse a VEJA, sob reserva, um dos peritos da PF. Não é um debate saudável. A Polícia Federal é um órgão de Estado e não pode permitir que prospere qualquer desconfiança, por menor que seja, de que ela age ou deixa de agir guiada por interesses políticos. Um inquérito tem o objetivo de apurar a prática de um crime, deve seguir todos os procedimentos legais, independentemente se eles vão beneficiar ou prejudicar quem quer que seja. No caso da agressão, o relato do ministro, por óbvio, merece toda a credibilidade, mas a prova técnica não pode ser desprezada, sob pena de, aí sim, favorecer quem o abordou. Alexandre de Moraes contou que estava na sala vip do aeroporto de Roma, retornando de uma palestra, quando foi xingado de “bandido, comunista e comprado”. Durante a confusão que se formou, seu filho, segundo o ministro, foi atingido por um tapa no rosto. Os agressores afirmam que eles foram insultados, o que gerou uma discussão acalorada.
As imagens do aeroporto serviriam, portanto, para confrontar as versões conflitantes, poderiam ajudar a esclarecer o que houve ou no mínimo subsidiar uma conclusão mais assertiva. Não foi o que aconteceu. O relatório do agente que analisou o vídeo, que não tem som, descreve que Andrea “aparentemente” discute com o filho do ministro e que Roberto “parece” dar um tapa no rapaz. Com base no laudo, o delegado concluiu que, além da agressão, “Roberto Mantovani Filho e Andrea Munarão provocaram, deram causa e, possivelmente, por suas expressões corporais mostradas nas imagens, podem ter ofendido, injuriado ou mesmo caluniado o ministro Alexandre de Moraes e seu filho Alexandre Barci de Moraes”.
O embate entre policiais e peritos, como era de esperar, será explorado pela defesa dos acusados. “O que garante que esse agente, por um engano técnico, não apagou alguma imagem? O que garante que eventualmente não houve até uma ação intencional de apagar algumas imagens?”, diz o advogado Ralph Tórtima, que defende a família Mantovani, ressaltando que, ao analisar o vídeo, a polícia italiana constatou que o único contato físico entre o empresário e o filho do ministro foi quando, durante a discussão, o braço de Mantovani impactou “levemente os óculos de Alexandre Barci”. Na terça-feira 24, o inquérito ganhou uma novidade que está provocando outra polêmica. O ministro do STF Dias Toffoli, relator do caso, autorizou que o próprio Alexandre de Moraes atue como assistente de acusação. O magistrado deve designar um representante de sua confiança que poderá inquirir testemunhas e propor novas diligências. O Ministério Público se manifestou contra a medida, argumentando que não há previsão legal para a existência de assistente de acusação nessa fase do processo. O que era para ser simples está ficando cada vez mais complicado.
Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865