Internet da Starlink, de Musk, avança em áreas profundas da Amazônia
Há pouco mais de um ano no Brasil, empresa expõe vantagens e desafios da comunicação em uma região sensível
Em maio de 2022, o megaempresário sul-africano Elon Musk, dono de companhias globais como a Tesla e a SpaceX, visitou o Brasil, onde foi recebido em um resort na cidade de Porto Feliz, em São Paulo, por empresários e autoridades. Saudado como “mito da liberdade” pelo presidente Jair Bolsonaro, em razão da compra, dias antes, do Twitter (que passou a se chamar X), Musk anunciou entusiasmado a disposição de levar o progresso à Amazônia. Embora planos específicos, como conectar 19 000 escolas, nunca tenham saído do papel, o evento marcou o início de um ciclo de expansão acelerada da internet rumo a áreas remotas. Quatro meses depois, a Starlink, empresa do seu conglomerado, começou a espalhar as primeiras antenas no Norte — em pouco mais de um ano, o número de equipamentos saltou de cinco para 39 000, localizados em 97% dos 450 municípios da região (veja o quadro). Três em cada quatro pontos de acesso estão no interior amazônico, o que permitiu levar a era digital a centenas de comunidades indígenas e ribeirinhas.
A chegada da internet trouxe à Amazônia profunda uma gama de ferramentas para o crescimento da economia. A alta velocidade e a estabilidade da conexão — proporcionadas por satélites que orbitam a Terra em altitudes mais baixas que as dos modelos tradicionais — permitem a popularização de transações banais como o uso do Pix e de máquinas de cartões. Também possibilita conectar atividades produtivas em locais distantes. Um exemplo é a Mazô Maná, startup que produz alimentos naturais por meio do incentivo ao cultivo e extração por povos tradicionais. O ativista ambiental Marcelo Salazar, CEO da empresa, cita a agilidade que a conexão mais rápida propicia. “Uma das nossas parceiras é uma usina de produtos da floresta que fica a um dia de viagem de Altamira, no Pará. Hoje conseguimos fazer o monitoramento on-line das atividades e realizar a manutenção de equipamentos à distância”, relata. Há quem veja na nova onda até uma forma de efetivamente integrar a Amazônia ao Brasil. “As capitais já têm estrutura de fibra ótica, mas no interior da Região Norte a Starlink cai como uma luva,” diz Augusto César Rocha, coordenador de Logística do Centro da Indústria do Estado do Amazonas.
As antenas de Musk ainda permitiram avanços na implementação de políticas públicas, como o atendimento médico a comunidades isoladas. “Na saúde, graças à internet via satélite já lançamos projetos-piloto de telemedicina. Na educação, conseguimos melhorar o programa Aula em Casa, que educa através da TV mas necessita da internet para conectar em áreas mais remotas”, afirma Fabrício Barbosa, secretário de Administração e Gestão do Amazonas.
Em paralelo, o progresso via internet trouxe um efeito colateral. Os mesmos serviços viabilizaram uma maior articulação entre quadrilhas que atuam na floresta. Apenas neste ano, quarenta antenas da Starlink foram apreendidas pela Polícia Federal e pelo Ibama em acampamentos utilizados pelo crime organizado em reservas indígenas e áreas sensíveis, como o Vale do Javari, onde atua uma intricada rede ilegal que explora garimpos, tráfico de drogas, caça, pesca e extração de madeira. Agentes relatam que a modernização da comunicação dificulta a fiscalização ao tirar deles o fator surpresa, permitindo que os bandidos acompanhem em tempo real as movimentações das equipes e desmontem os equipamentos antes de serem flagrados. “As agências reguladoras precisam aumentar o controle sobre essas transmissões, por exemplo, fornecendo dados de geolocalização das antenas e bloqueando o sinal em áreas já identificadas como acampamentos ilegais”, alerta Hugo Loss, chefe de Operações de Fiscalização do Ibama. A Anatel diz que isso só pode ser feito por meio de ordens judiciais.
Outra consequência preocupante da era digital está relacionada ao impacto sociocultural da tecnologia nas comunidades. A popularização da internet tem potencial para influenciar o modo de vida tradicional — incluindo crenças e costumes históricos. Prova disso é o surgimento de influenciadores na região. Sim, isso mesmo, índio também quer TikTok! Um exemplo dessa nova geração é Kauri Waiãpi, morador da aldeia Karapijuty, no interior do Amapá, que já tem 720 000 seguidores no Instagram e 2,8 milhões no TikTok, conquistados com memes, vídeos sobre pratos típicos e piadas sobre a vida indígena. “Só recebemos ‘bolsa Funai’ de 60 000 reais do seu imposto”, respondeu, por exemplo, a um seguidor que disse que “todo índio é preguiçoso”. A exemplo do que ocorreu com a chegada dos conquistadores europeus na era das navegações, o impacto das novidades inevitavelmente mudará a vida daqueles povos — para o bem e para o mal.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874