Cercado de favelas dominadas ora pelo tráfico, ora pelas milícias, o Rio de Janeiro tem na segurança e no combate à criminalidade os pontos mais sensíveis de sua administração. Não é de hoje que cada governo que entra anuncia planos ambiciosos para o setor que, mal costurados, acabam dando em nada. No fim de 2008, a gestão de Sérgio Cabral começou a implantar as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), um plano de ocupação dos morros pela polícia, seguido de melhoria de infraestrutura, serviços sociais e ações comunitárias. A ideia era que a própria comunidade fecharia fileiras com as forças de segurança, expulsando a bandidagem. Por um momento, o projeto pareceu que ia dar certo. Acabou desmoronando por planejamento deficiente, despreparo da polícia e corrupção endêmica em todos os escalões.
Tendo passado depois disso por uma intervenção militar na área de segurança, que ficou por dez meses em 2018 a cargo do Exército, e pela bizarra orientação de Wilson Witzel, afastado por suspeita de corrupção, de “atirar na cabecinha” dos bandidos, o Rio entra agora no Cidade Integrada, que começa a ser implantado pelo vice e sucessor de Witzel, Cláudio Castro. “Não se trata de um programa de pacificação, mas de retomada de território, de entrada de serviços públicos e posterior devolução à comunidade”, diz Castro, que promete investir nele 500 milhões de reais, uma fração dos 9 bilhões arrecadados com a privatização da Cedae. Em vez de envolver diversas secretarias desconectadas entre si, como a ação de Cabral, o programa é centralizado no gabinete do governador, que coordena a atuação de quarenta pastas. Outra diferença crucial é o revezamento constante dos policiais nas favelas para evitar, como já aconteceu antes, aproximação e conluio com os bandidos.
Na teoria, trata-se de uma estratégia bem elaborada e consistente. Os especialistas citam, contudo, dois pontos que podem atrapalhar a execução do plano. Um é a necessidade de articulação com as comunidades, pegas de surpresa com as duas primeiras ocupações — embora a ação estivesse sendo planejada havia oito meses. Desde 19 de janeiro, cerca de 120 efetivos da Polícia Militar fincaram pé na favela do Jacarezinho, na Zona Norte, dominada pelo tráfico, e outros 100 estão instalados na Muzema, na Zona Oeste, praça forte da milícia. “Não há conversa com a favela, não fizeram pesquisas nem perguntaram o que a gente quer”, reclama Diego Aguiar, líder comunitário do Jacarezinho. Ciente da importância desse diálogo, o governo promete para os próximos meses um conselho formado por doze moradores eleitos e doze representantes das secretarias. Outro questionamento crucial é se a mesma polícia que fracassou antes está preparada para ter sucesso agora. “O policiamento de proximidade requer a criação de vínculo, mas sem que o policial deixe de cumprir sua missão. É preciso estabelecer normas de convivência, mostrar qual é a regra do jogo”, ensina Paulo Storani, antropólogo e ex-capitão do Bope.
A reportagem de VEJA esteve no Jacarezinho e já pôde observar algumas mudanças positivas da presença do Estado, como a retirada de mais de 1 000 toneladas de lixo e entulho dos rios e melhoria de espaços públicos. Um dos programas mais procurados, já em funcionamento, capacita mulheres para o mercado de trabalho e o empreendedorismo, oferecendo às alunas um auxílio de 300 reais. A maioria das 35 ações previstas no Cidade Integrada, no entanto, ainda não saiu do papel. Mas o governo garante que vão em algum momento. A grande dificuldade, essa bem mais complexa, é a relação das forças de segurança com os moradores. Como sempre, existem reclamações sobre a atuação da polícia, como a revista de casas sem mandado judicial e alguns excessos cometidos.
Numa clara manifestação da cultura que predomina na corporação, o estudante Yago de Souza, 21 anos, que é negro, foi preso quando saiu para comprar pão e libertado dois dias depois, por não ter envolvimento com o tráfico. “Erros podem ocorrer. Vamos aguardar as investigações, mas a Polícia Militar não se furtará a punir os maus policiais”, assegura Cláudio Castro. Na Muzema, o maior obstáculo tem sido superar o medo dos moradores, que pouco procuram o distribuidor oficial de gás lá instalado e, por pavor de represálias, seguem utilizando o comércio ilegal dominado pelos milicianos. A batalha ali é para ganhar a confiança da população mostrando que essa ação não será desmontada em breve, deixando-os novamente sob o controle da milícia.
Experiências mundo afora mostram que é possível, sim, colocar um fim à violência em ambientes como as favelas cariocas. E o caminho adotado no Rio, com a retomada de território das mãos dos criminosos, tem dado bons resultados. Medellín, na Colômbia, é o exemplo mais citado de vitória contra o banditismo. O antigo quartel-general do megatraficante Pablo Escobar se transformou completamente quando o Estado passou a promover programas consistentes, que não mudaram conforme o governo, investiu fortemente no preparo das forças policiais e em inteligência, introduziu programas de geração de renda para os moradores e instalou bibliotecas, parques e escolas nas áreas pobres. No Rio de Janeiro cansado de planos fracassados, e ainda por cima em ano eleitoral (o que aumenta a desconfiança da população), o Cidade Integrada terá de mostrar muito serviço para ser considerado bem-sucedido. Mas vale a tentativa. As outras opções — ficar de braços cruzados ou entrar ali apenas distribuindo tiros — não funcionaram.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776