Nasci em Acari, comunidade pobre da Zona Norte carioca, em uma família de cinco irmãos. Para ajudar, comecei a catar latinhas na rua para reciclagem, aos 7 anos. A comida era escassa e, quando a fome batia, minha mãe dizia: “Dorme que passa”. Não passava. Eu não gostava de estudar. Acho que me faltava autoestima para acreditar que conseguiria aprender e chegar a algum lugar com aquilo. Mas aí veio a adolescência, e eu, muito tímido, descobri companhia nos livros de autoajuda, que me abriram a cabeça. Fui de uma leitura a outra, variando nos assuntos, e isso me transformou. Me fez inclusive mais interessado no convívio com as pessoas. O que eu nunca imaginaria é que um dia seria eu um autor e que, num lance surpreendente, acabaria indo falar sobre minha vida em Harvard, uma das melhores universidades do mundo. E o melhor: pela primeira vez, havia gente que queria ouvir.
Me formei em escola pública, mas não segui para a universidade. Precisava trabalhar e arranjei emprego na Fiocruz, como segurança. Detestava aquilo, por isso me veio a ideia de tentar ser gari — havia vagas na prefeitura e me abriria uma janela para ter contato com os outros, ver a vida de perto. Quando contei para meus amigos e familiares, eles estranharam. É uma profissão ultradesvalorizada, cercada de preconceitos, como tantas que envolvem trabalho braçal e serviços como esses no Brasil. É difícil achar quem entenda a importância da turma da limpeza, essencial para a saúde pública. Também há uma incompreensão sobre a visão privilegiada que um gari tem das ruas — ali vi muita briga de casal, discussões sem sentido na mesa de bar, a falta de modos e a intolerância. Foi dessa experiência que me veio a inspiração para o livro que mudou tudo.
Na pandemia, decidi começar a escrever sobre o que observei nessas mais de duas décadas. Claro que esbarrei com cenas de amizade e amor, porém também presenciei muita confusão gratuita, pessoas querendo resolver as coisas no grito, o que me fez refletir sobre a necessidade de mais solidariedade e inteligência para conviver em sociedade. Eu próprio já fui alvo de ódio inexplicável, enquanto exercia minha profissão, mas a função de gari acabou me fazendo bom de conversa e assim tento resolver os embates. Por incrível que pareça, esses pensamentos tão simples viraram um livro, Comportamento que Te Salva. Publiquei pela Sal e Luz, uma editora on-line. A surpresa veio depois. Contei aos professores da escola municipal onde faço a faxina, eles gostaram muito e pediram que falasse às crianças sobre como dar respostas não violentas às adversidades do dia a dia e sobre a relevância do diálogo.
Dei a palestra e, no boca a boca, outras escolas se interessaram. Numa delas, o secretário de Educação, Renan Ferreirinha, estava na plateia. Ele gostou tanto da iniciativa que me convidou para lançar a obra na Bienal do Livro. E foi além: sabia que havia inscrições abertas em Harvard para palestrantes em um evento voltado para o Brasil e colocou meu nome lá. Quando me disseram que eu havia sido aceito, não acreditei. Aos 55 anos, sair de Acari, pegar meu primeiro avião e falar sobre minha história, que não tem nada de muito especial, era inacreditável. Pessoas como eu normalmente são transparentes. Pois naquele dia lá estava eu, diante de 300 pessoas, tomado de nervoso. Tremi no início, mas fui em frente, e vi a emoção no rosto de pessoas que pareciam admirar o gari que começou a gostar de ler e a filosofar. Uma editora francesa se disse até interessada em traduzir o livro para o francês. Saí de lá com a sensação de estar no rumo certo e com vontade de ler e estudar muito mais. Que venham outros voos.
Valdeci Boareto em depoimento dado a Mafê Firpo
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891