“Jeremias, maconheiro sem-vergonha, organizou a Rockonha e fez todo mundo dançar”, diz um trecho da música Faroeste Caboclo, de Renato Russo. A Rockonha, nome que une rock e maconha, existiu mesmo. Quem organizou não foi nenhum maconheiro sem-vergonha: foram filhos de altos funcionários públicos, de profissionais liberais e até de militares de Brasília. A Rockonha foi uma festa realizada em uma chácara em Sobradinho, Distrito Federal, a 18 quilômetros do centro da capital, no dia 30 de agosto de 1980. Mais de 500 jovens se reuniram para ouvir rock e fumar um baseado. Uma ação conjunta da Polícia Federal, da Polícia Militar do DF, da Delegacia de Menores e do Detran levou pelo menos 200 deles para o Quartel da Polícia Militar em Sobradinho. A celebração havia sido promovida pelo filho de um médico ortopedista, dono da chácara. Em depoimento à polícia, ele afirmou desconher o uso de drogas em sua propriedade.
Um informe confidencial da Inteligência do Exército resume a Rockonha como “um encontro de viciados e traficantes de tóxicos”. O documento explica o nome da festa: “O termo Rockonha é uma fusão de rock com maconha”. Os convites distribuídos em Brasília chamavam os jovens para ouvir “Fucking Sound”, que o Exército traduziu como “ato sexual com som”. Na verdade, era “som fodido”. Impressos em papel-seda, foram utilizados durante a balada para enrolar os cigarros.
Pelo menos um outro encontro no estilo rock com música já havia ocorrido em Brasília, mas naquele 30 de outubro a turma organizadora foi muito explícita no texto que apresentava a festa. O que levou a Polícia Federal ao local da Rockonha foi a justamente a interceptação de um convite, em papel-seda, onde estava escrito: “Para matar as saudades, os delírios e os fisuros, a Rockonha vem convidar você para mais um som viajante baseado no bosque, a partir de 21:00 horas de 30.08.80. Agradecemos a fucking sound e contamos mais uma vez com sua presença. Atenciosamente, Rockonha”.
A parte mais sensível para as autoridades era justamente o perfil dos frequentadores da balada. Os relatórios do Exército e do SNI, que trazem os nomes de vários jovens presos em flagrante na Rockonha, revelam que eram filhos de funcionários da Presidência da República, da Vice-Presidência da República, do Ministério da Fazenda e do Senado Federal. Quando aconteceu a Rockonha, o presidente da República era o general João Baptista de Figueiredo e o vice-presidente era Aureliano Chaves.
A Rockonha produziu um efeito devastador no currículo de vários jovens presos na festa, mesmo aqueles que supostamente nem usaram drogas. Até 1986, o governo usou as fichas dos participantes da Rockonha para inviabilizar contratações em cargos públicos. Relatórios da Polícia Federal com “levantamentos de dados biográficos” eram distribuídos para os ministérios, dando os nomes dos estudantes que tinham participado da Rockonha.
O nome Rockonha também trouxe problemas até para o próprio Renato Russo. A Emi-Odeon enviou em 1987 à Divisão de Censura de Diversões Públicas um exame da letra de Faroeste Caboclo. Pareceres da Polícia Federal foram “pela não liberação” e “pelo veto”. A letra sofreu cortes, e o governo recém-saído do regime militar liberou a música, em 1988 sem as referências às drogas. Era tarde: Faroeste Caboclo era amplamente tocada nas rádios de Brasília e a turma da cidade já sabia a longa letra de cor, sem os cortes impostos pela censura. A canção se transformou no verdadeiro hino de grande parte da juventude no início da redemocratização.