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Facções comandam o maior presídio do país. E com aval da Justiça

O juiz responsável pela prisão diz que "acordo de paz" pôs fim à violência. Lá dentro, as facções fornecem alimentos e itens de higiene aos detentos

Por Felipe Frazão Atualizado em 3 abr 2017, 18h37 - Publicado em 8 fev 2017, 19h42

Na maior penitenciária do país, a superlotação é o menor dos problemas. Encravado no coração da capital gaúcha, a oito quilômetros da sede do governo estadual, o Presídio Central de Porto Alegre, recentemente rebatizado de Cadeia Pública, abriga mais de 4.600 detentos em um espaço onde não deveria haver mais de 1.900. As celas ficam permanentemente abertas. Não há chaves. Nem grades. Os presos circulam livremente pela galerias e, noite e dia, ditam as regras. O descontrole das autoridades é tamanho que o próprio juiz encarregado de fiscalizar o presídio, Sidiney José Brzuska, admite: quem manda por lá são as facções criminosas.

Até mesmo itens básicos, como produtos de limpeza e as roupas usadas pelos detentos, são fornecidos pelos criminosos que comandam as três maiores facções em atuação no estado. Diz o magistrado: “O Estado é dependente das facções, são elas que asseguram a integridade da pessoa presa. Dentro de uma galeria tem 500 presos e nenhum policial, e quem garante que você não vai morrer ali dentro é quem controla o lugar. Portanto, a vida está na mão da facção, não do Estado. Se o Estado quer reassumir o controle do presídio, a primeira coisa é garantir a integridade física do preso”.

O juiz afirma que atualmente o governo estadual, responsável pela unidade, fornece apenas energia elétrica, água e alimentação básica para os presos. Todo o resto quem providencia são as facções criminosas, o que, observa o magistrado, só faz aumentar o poderio dos criminosos dentro do presídio. “A facção se torna credora do sujeito em cima de comida, remédio, material de higiene, roupa, calçado. Quem fornece é a facção ou a família. O Estado não dá”, afirma.

O testemunho do juiz tem a força de quem, literalmente, conhece o estabelecimento por dentro: desde 2012 ele tem um gabinete no interior do presídio. A presença frequente do juiz, porém, não é capaz de diminuir a força das facções na unidade. Aliás, em mais um exemplo do absurdo em que se transformou o sistema prisional brasileiro, para instalar a vara especial de execuções dentro da cadeia a Justiça gaúcha teve que fazer um “acordo verbal” com as facções.

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Oficialmente, a segurança do presídio cabe à Brigada Militar, como é chamada a Polícia Militar do Rio Grande do Sul. Mas só oficialmente. Na prática, como diz o juiz, são os próprios presos que estabelecem as regras e, a partir de um “pacto de boa convivência”, garantem a paz na unidade.

Juiz Sidinei Brzuska conversa com presos no Presídio Central de Porto Alegre
O juiz Sidiney José Brzuska conversa com presos no Presídio Central de Porto Alegre (Acervo pessoal Sidiney Brzuska/VEJA) (Acervo Pessoal Sidinei Brzuska)

O caos no presídio já foi descrito, em processos da Organização dos Estados Americanos (OEA), como um sistema de “autogestão” ou “administração compartilhada”, em que o Estado e os presos dividem as responsabilidades sobre o funcionamento da unidade. Em 2013, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos exortou o Brasil a adotar providências diante da gravidade da situação na unidade. A comissão recomendava que o governo não deixasse por conta dos próprios presos funções disciplinares e o controle de segurança dentro do presídio. Não adiantou.

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Pacto

Para trabalhar de dentro do presídio, apesar da presença dos militares, Brzuska fez rodadas de conversa e impôs condições aos presos: não poderia haver desavenças, assassinatos ou desrespeito a ele, aos policiais e funcionários. A partir do acordo, diminuíram os tumultos internos. Passou a vigorar no presídio a regra de que a cela é a extensão do lar dos presos. Brigas externas de facções ficariam restritas às ruas. Em contrapartida, os presos teriam ali um representante do Judiciário para facilitar a análise de seus processos.

“Minha única exigência para atender no presídio era eu tinha que reproduzir lá dentro o mesmo nível de segurança e conforto que eu tenho na minha sala no fórum. Significa não ter ninguém dando soco no outro, xingando os policiais, fumando maconha ou dando facada na minha frente”, explica o juiz.

Embora reconheça o domínio das facções, Brzuska nega que o Estado tenha se curvado ao poder do crime organizado. E defende o método de diálogo com os detentos para estabelecer as regras civilizatórias num espaço que já havia sido perdido para os bandidos. “Quem parou de dar facada e de se rebelar? Eles é que estão se curvando. Não pedimos favor a nenhum preso. Qual seria a melhor forma de se relacionar com as pessoas se não com o diálogo? É mais importante conversar do que impor. Quando as pessoas e os presos ajudam a construir algo, a tendência de dar certo é maior, eles se sentem integrantes e passam a se esforçar para que dê certo.”

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Brzuska atende os presos uma vez por semana dentro do presídio. Ouve pedidos de remoção, questionamentos sobre progressão de pena e pedidos de acesso a medicamentos. No atendimento às famílias, faz-se inclusive reconhecimento de paternidade. Uma vez por mês, em dias de visita uma equipe de servidores recebe as famílias, orienta sobre os processos e prazos. A sala é espartana, no terceiro andar do prédio da administração do presídio, decorada por quadros da deusa Têmis, símbolo da Justiça, e por grafites feitos pelos próprios detentos.

O juiz conhece em detalhes o passado, a família, os processos e o comportamento dos presos. Faz um trabalho que resume em três palavras: proximidade, diálogo e atenção. “O acompanhamento pessoal dos presos e das famílias, dentro da unidade, o diálogo muito próximo, permite a redução dos índices de violência e de morte”, afirma. Ele recebe parentes dos detentos e representantes das alas e facções para conversar – sem algemas. Entra sozinho nas galerias – algo que a polícia não faz – e diz que nunca sofreu ameaças. “Se eu botar o pé na galeria, ninguém pode dar um pio porque eu cumpro o meu trabalho.”

Ministra Cármen Lúcia faz visita surpresa ao Presídio central de Porto Alegre - 18/11/2016
A ministra Cármen Lúcia, durante inspeção ao Presídio Central de Porto Alegre, em novembro de 2016 (Luiz Silveira/Agência CNJ/Divulgação)

Luiz Silveira/Agência CNJ

No ano passado, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Cármen Lúcia, fez uma inspeção no presídio. Foi a relação de Brzuska com os presos que garantiu a tranquilidade da visita. A ministra ficou entre 1.800 detentos. “Eu disse a ela: ‘esse é o maior sinal de respeito que a senhora vai ter dentro de uma presídio’”, conta Brzurska.

O juiz reputa ao pacto que ajudou a construir a redução dos índices de violência e de mortes dentro do presídio. Ao longo dos anos, a cadeia foi recuperando a “tranquilidade”. As rebeliões também rarearam. Segundo ele, os presos perceberam que eventuais convulsões atrapalhariam os “negócios” das facções. “A lógica aqui é não trazer a morte para dentro do sistema, porque é ruim para os negócios. Se o preso controla uma galeria e morre alguém ali, é sinal de que ele não manda nada. Então ele não deixa acontecer.”

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Os negócios a que o magistrado se refere com curiosa tranquilidade são muitos. Dentro do presídio funciona livremente um mercado informal de produtos diversos – de material de higiene a lanches. Tudo controlado pelas facções. Drogas, celulares e armas também são comercializadas. Criam-se dívidas, que  são pagas nas ruas. “Do jeito que está, o Central é bom para o crime, porque eles (os presos) lucram, e bom para o Estado que não gasta dinheiro, já que os presos pagam tudo sozinhos.”

Histórico

O antigo Presídio Central, um colosso marrom com centenas de lençóis coloridos pendurados nas janelas, tem aspecto ainda pior por dentro. As paredes carcomidas, manchadas por infiltrações em tom amarelado, com tijolos, ferro e concreto armado aparentes exibem o grau de deterioração do edifício, construído em 1959. Pavilhões em ruínas foram parcialmente demolidos. Esgoto corre pelos cantos do pátio. Há ratos e baratas pelos cantos.

A paz momentânea dentro da cadeia destoa da realidade da capital gaúcha. Porto Alegre vive uma escalada da criminalidade. Entre janeiro e junho de 2016, o número de assassinatos aumentou 17% na cidade em comparação com o mesmo período de 2015. Os 351 homicídios ocorridos no primeiro semestre do ano passado também superam os registrados ao longo de todo o ano de 2006 (283). A correlação entre as facções que dividem o controle do presídio e a violência do lado de fora é direta. Se dentro da unidade os grupos mantêm o “pacto de paz”, o acordo não se estende às periferias da cidade, onde elas disputam o mercado das drogas.

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No ano passado, houve mais de uma dezena de decapitações e esquartejamentos nas ruas de Porto Alegre, principalmente em bairros pobres da capital. “Essas organizações criminosas têm produzido um alto número de execuções. O pano de fundo são as drogas. Eles matam para impor baixas de um lado e de outro. Essas decapitações e esquartejamentos são situações novas, sinais de extrema crueldade para intimidar e mandar recado”, diz o delegado Paulo Rogério Grillo, diretor do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). As execuções são tão brutais quanto as dos massacres de detentos em Manaus e Roraima. A diferença é que, no caso gaúcho, enquanto as facções se toleram dentro da prisão com a bênção da Justiça, a guerra se dá do lado de fora.

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