Situada na Zona da Mata mineira, a Universidade Federal de Viçosa é um polo de excelência que desfruta alto prestígio, reunindo pesos-pesados da academia e produzindo pesquisas de elevado alcance. Entre suas mais concorridas graduações está a do curso de letras, citada pela notável qualidade. Neste momento, porém, é um motivo bem menos nobre que conduz a faculdade ao centro das atenções. Pois naqueles centenários corredores se desenrola, ainda na surdina, uma nada edificante trama que enreda um proeminente professor da instituição.
Dono de currículo abrilhantado por passagens por universidades europeias e pelo domínio de sete idiomas, Edson Ferreira Martins, 43 anos, pós-doutor em estudos clássicos com especialidade em Machado de Assis, é acusado por alunas e ex-alunas de um leque de crimes que abrange abuso de poder, violência física, assédio moral e sexual e estupro — um escândalo silencioso que virou, em 2019, alvo de uma sindicância interna e se desdobrou em um processo administrativo disciplinar.
“Edson me deu de tudo para beber — vinho, cerveja, vodca. Fiquei sem capacidade de discernir, vulnerável, e ele me estuprou. Ele me atormentou até meu último dia em Viçosa. Entrei em depressão e perdi 7 quilos. Dez anos depois, ainda faço terapia.”
N.L., 28 anos
Ainda em andamento, a investigação da universidade sobre o professor já colheu depoimentos considerados tão contundentes que os responsáveis decidiram enviá-la ao Ministério Público Federal de Minas Gerais, onde corre sob sigilo de Justiça. VEJA teve acesso a um espantoso conteúdo de 870 páginas, no qual onze jovens relatam com riqueza de detalhes os abusos dos quais afirmam ser vítimas, umas recentemente, outras até uma década atrás. A reportagem conversou com oito delas, na condição de anonimato. Elas têm medo, quando não pavor, de se expor. O conjunto das histórias ajuda a traçar um modus operandi de Martins, que, segundo suas alunas, se valia do poder do cargo e da admiração que inspirava para seduzir moças mais novas que ele, “preferencialmente as calouras”, oferecendo vagas em projetos de pesquisa e puxando papo nas redes. Às vezes, partia direto para o flerte.
No início, de acordo com o documento de Viçosa, ele se apresentava encantador, o “professor da galera”. Na cidade, de 80 000 habitantes, sua fama de galanteador extrapolava os muros do câmpus — era comum ser visto por lá ao lado de estudantes. As que decidiram cutucar suas feridas e falar dão uma dimensão de como o elo com Martins foi se tornando, com o tempo, doentio e abusivo.
Aos 28 anos, N.L. conta que ficou tão traumatizada com o relacionamento de um ano que deixou família e emprego para recomeçar a vida em outra cidade. Já no primeiro encontro, a mágica desfez-se quando o professor estimulou sua aluna, então com 18 anos, a beber de tudo — cerveja, vinho, vodca. Sem nenhuma capacidade de discernimento, N. só lembra de um corpo sobre ela, num ato sexual que lhe deixou memória amarga. “Bem depois percebi que aquilo foi um estupro. Eu estava completamente vulnerável e ele se aproveitou”, dispara ela, que também o acusa de ter sumido com seu celular em uma viagem, deixando-a incomunicável. Na ocasião, em meio a uma discussão, teria sido arremessada duas vezes ao chão. O pesadelo de N. ocorreu em 2013, mas até hoje ela faz tratamento para lidar com as sequelas psicológicas.
“Estávamos conversando, eu discordei da opinião dele e, do nada, ele explodiu, aos gritos. Enquanto eu chorava e tremia, Edson veio para cima de mim para fazer sexo. Não reagi por medo. Me senti suja e humilhada por muito tempo.”
Z.M., 30 anos
Entre as denúncias mais graves que recaem sobre o autor de inúmeros livros e de um documentário sobre o universo machadiano, aparece no processo tocado pela universidade mais um caso de estupro. Em descrição parecida com a das demais jovens, Z.M., agora com 30 anos, lembra que o docente começou a cortejá-la em 2017, num momento em que ela deixou entrever suas fragilidades. Estavam em pleno calor do princípio de relacionamento, e o professor se mostrava especialmente atencioso. Z. foi então à sua casa, um sítio afastado da cidade, e a conversa fluía. Até que, em certo ponto, ela discordou dele, que, transtornado, pôs-se a gritar.
“Ele me chamava para cafés, bares e me oferecia carona. Já sabia de sua reputação e nunca cedi às investidas. Com o tempo, o Edson começou a me prejudicar academicamente. Acabei abandonando a universidade, que me pareceu omissa diante de tantos abusos.”
F.O., 29 anos
Amedrontada, Z. se refugiou em um quarto. “Fiquei encolhida, chorando e tremendo na cama. Aí ele entrou, me pegou de costas e, mesmo sem eu reagir, fez sexo comigo”, revolve as lembranças. “Meu desespero era tanto que tive receio de dizer não.” Após o episódio, só conseguiu se aproximar de outro homem quatro anos mais tarde. Especialistas consultados por VEJA são categóricos em definir ambos os episódios como estupro. “São casos clássicos de estupro de vulnerável, quando a vítima não tem capacidade para consentir”, enfatiza Flávia Pinto, presidente da OAB Mulher.
As jovens demoraram tanto a remexer esse dolorido caldo de emoções porque se sentiam solitárias e achavam que, diante do prestigiado mestre, seriam desacreditadas. Daí terem se fechado em silêncio. Mas uma foi se aproximando da outra, entenderam ser parte de um grupo e acionaram uma advogada. Nem todas cederam a suas “investidas sexuais”, mas foram atingidas em muitas camadas, inclusive por rejeitá-lo — motivo para algumas serem humilhadas em classe e removidas de projetos acadêmicos, conforme registraram em depoimentos. O incentivo ao uso de drogas variadas também foi mencionado, como no relato de C.W., 23 anos, que escutou de Martins em uma festa que “estava doido de LSD”. Em um encontro posterior, ele detalhou suas experiências sexuais sob efeito de entorpecentes e lhe ofereceu um ácido, que ela recusou. “Decidi largar o trabalho em que ele me orientava e perdi o gosto pelo curso”, desabafa. “Muitas dessas meninas me procuravam para não fazer aula com Martins, justificando terem se relacionado com ele ou por sua fama mesmo”, diz Joziane Assis, coordenadora da faculdade de letras de 2020 a 2022.
Durante o processo, o professor chegou a ser afastado por sessenta dias. Mas, com a pandemia, vieram as aulas on-line, e ele retomou o posto, onde permanece. Em setembro de 2021, já atropelado pela avalanche de acusações, recebeu uma promoção e escalou um nível na hierarquia docente. “É revoltante ver a omissão da instituição frente a tantos abusos”, indigna-se F.O., 29 anos, uma das que o acusam. Como é padrão nesses casos, Martins, conhecido como habilidoso usuário do português — nunca deixa registrada uma mensagem em celular que o desabone completamente —, faz uso de artifícios, ainda segundo os relatos, para sempre inverter o enredo. Ele repete nos corredores universitários que as alunas é que não aceitam o fim da relação e, por isso, o envolvem na teia de acusações. “Pessoas assim se aproveitam da posição de poder para manipular e sabem o momento de atacar”, avalia a psicóloga Mariana Luz, diretora do Me Too Brasil.
Representante das alunas, a advogada Lise Póvoa encaminhará nos próximos dias uma notícia-crime contra Martins aos ministérios públicos estadual e federal em Minas. Já a universidade informa que está analisando as evidências e, em breve, baterá o martelo sobre seu destino. Na defesa de Martins, Marinês Alchieri garante que “há provas robustas de que a vítima é ele” e diz que está preparando “ações criminais contra as falsas denúncias e pelas reparações de danos decorrentes”. Enquanto isso, o professor, segundo relatam colegas do departamento de letras, segue cultivando o hábito de seduzir suas alunas.
Publicado em VEJA de 5 de outubro de 2022, edição nº 2809