Parte das forças políticas ligadas a Jair Bolsonaro e a Tarcísio de Freitas passou os últimos dias tentando aparar o mal-estar instalado entre ambos após o desentendimento em reunião com a bancada do PL, realizada na semana passada em Brasília. Na ocasião, o governador de São Paulo tentou argumentar a favor da reforma tributária, apoiada acertadamente por ele, mas acabou sendo interrompido pelo ex-presidente. Na sequência, chegou a ser vaiado por parlamentares da sigla que, sob orientação do próprio Bolsonaro, cerraram fileiras contra o projeto, com o receio de dar de bandeja a Lula a “vitória” na aprovação do texto. O capitão, aliás, pressionou os seus liderados para que votassem contra ou que ao menos se manifestassem pelo adiamento da votação. Como se sabe, acabariam sendo derrotados no Congresso — com vinte deputados do PL votando a favor da reforma. Além de não ter rendido resultados práticos, a reunião permitiu a exposição pública de uma divergência importante entre dois líderes fundamentais da direita.
Diante do inegável mal-estar, o governador e o ex-presidente procuraram agir rápido. Logo no dia seguinte, fizeram gestos de reconciliação, em um novo encontro em Brasília. Em uma conversa classificada como “franca” por Tarcísio, o governador manteve sua posição sobre a reforma tributária, embora tenha feito questão de pontuar mais uma vez a sua gratidão a Bolsonaro. Ambos também se preocuparam em dar sinais públicos de que estão em paz. Pelo lado do ex-presidente, o seu filho, deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) — um dos mais ferozes ao criticar Tarcísio após o episódio em Brasília —, fez questão de se encontrar com o governador para aparar alguma aresta.
O clima de reconciliação resolveu o problema mais imediato, mas não deve ser suficiente para afastar as desconfianças de ambas as partes. Os aliados mais aguerridos do capitão suspeitam que Tarcísio pode fazer novos movimentos a fim de se afastar de Bolsonaro, de forma a ocupar o espaço de uma direita menos radical com vistas a uma possível candidatura presidencial em 2026. Esse campo ficou aberto com a inelegibilidade do ex-presidente confirmada recentemente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Para os bolsonaristas raiz, articular politicamente com a pretensão de substituir o ex-presidente é uma traição, enquanto ele ainda não esgotar os recursos para reverter a sentença, por mais improvável que seja obter algum sucesso na empreitada. “Se ele virar as costas para essa turma, dificilmente terá condições de construir uma candidatura ao Palácio do Planalto, caso esse seja realmente seu plano”, afirma Murilo Hidalgo, diretor do Instituto Paraná Pesquisas.
Ao mesmo tempo, Tarcísio tem sofrido pressões entre o pessoal que deseja carimbá-lo quanto antes com a marca de “presidenciável” e, de preferência, num figurino mais ao centro, o que embute a necessidade de abandonar as bandeiras mais radicais. “A disputa ainda está distante, mas o Tarcísio é a opção número 1 e só não será candidato se não quiser ou se fizer um péssimo governo em São Paulo, o que é improvável, dada a popularidade crescente dele”, avalia o senador Ciro Nogueira (PP-PI), ex-ministro da Casa Civil de Bolsonaro e cacique do Centrão. O deputado Marcos Pereira, presidente do Republicanos, sigla de Tarcísio, diz que o governador foi um “grande estadista” no episódio da reforma tributária. “Foi impetuosamente massacrado e atacado pelos que fazem oposição por oposição”, afirmou. Para se equilibrar entre as pressões dos dois lados, o governador tem declarado que seu foco é São Paulo — seu discurso tem sido no sentido de defender um “legado” para o estado.
Por outro lado, a despeito do sentimento sincero de agradecimento a Bolsonaro por ter apostado nele como ministro e, depois, como candidato ao Palácio dos Bandeirantes, Tarcísio deixa claro que tem um estilo próprio de governar e de lidar com o mundo político. No encontro de reconciliação, inclusive, ele teria deixado claro a Bolsonaro que “amigo é aquele que diz o que o outro não quer ouvir” e alertado o ex-capitão para que contivesse a ala radical da sua legenda.
No âmbito estadual, Tarcísio também procura se mostrar irredutível no esforço para fazer um governo técnico. Recentemente, não cedeu às pressões do União Brasil pelo comando da Secretaria de Habitação, cobiçada por ter um orçamento anual de 1,4 bilhão de reais, um dos maiores do Palácio dos Bandeirantes. A interlocutores, garantiu que não irá negociar mudanças em seu secretariado em troca de apoio no Legislativo e que prefere, inclusive, sofrer eventuais derrotas a desmembrar seu “time técnico”.
Esse estilo conhecido de Tarcísio vem provocando desde o início de sua gestão trombadas com os bolsonaristas mais radicais. O governador tem compromissos e deve favores a Gilberto Kassab (PSD), que foi fundamental na campanha e é seu atual secretário de Governo. Na disputa por espaços dentro do Palácio dos Bandeirantes, Kassab é visto como um rival pela turma do ex-presidente. A lentidão em aceitar sugestões de nomeações de bolsonaristas e outros integrantes da pretensa base aliada representa outro problema. Recentemente, o primeiro sinal de alerta veio do próprio PL, quando parte da bancada se insurgiu contra um projeto de reajuste salarial para policiais enviado pelo Executivo.
O movimento foi visto como um fato isolado de uma “minoria” da bancada que é hoje a maior da Casa, com dezenove parlamentares, mas aliados veem um cenário difícil em votações futuras. “Uma parcela crescente do PL na Assembleia quer mais participação em cargos e eles não vão sossegar enquanto não tiverem isso. E o Tarcísio vai ter que negociar”, diz um correligionário do governador. Esse mesmo aliado avalia que, a partir do segundo semestre, com o envio de propostas mais complexas, como a da reforma administrativa, a tendência é que a temperatura aumente.
Apesar das diferenças de comportamento e de temperamento entre Bolsonaro e o governador, o fato é que os destinos políticos dos dois devem continuar entrelaçados — pelo menos, por enquanto. Inelegível, o ex-presidente precisa do apoio do aliado para continuar alimentando seu eleitorado e não cair na irrelevância. Tarcísio, por outro lado, dificilmente poderá prescindir do apoio do capitão se quiser alçar voos mais altos. Recém-lançada, a pesquisa “Para onde vai a direita”, dos institutos Locomotiva e Ideia, ilustra bem o cenário. O levantamento mostrou que quase a metade dos mais de 58 milhões de eleitores de Bolsonaro no segundo turno das eleições do ano passado o considera uma figura indispensável para representar o campo da direita no Brasil.
O mesmo levantamento mostra que, diante da confirmação de que o ex-presidente estará mesmo fora do jogo político por muitos anos, cenário mais provável, o apoio de Bolsonaro continuará sendo crucial: 28% dos eleitores admitem que é possível que existam outras pessoas para representar o campo de oposição à esquerda, mas desde que recebam o aval de Bolsonaro. “O Tarcísio ainda é muito ligado ao Bolsonaro e, caso ele não tenha o apoio do ex-presidente, o fato de ele ser governador de São Paulo, por exemplo, pode até pesar contra. Em outras regiões há uma certa falta de identificação e até antipatia em relação ao estado”, afirma Cila Schulman, CEO do instituto Ideia.
Enquanto o peso político de Bolsonaro sem mandato representa uma grande incógnita, sobretudo a médio e longo prazo, Tarcísio tem um campo aberto à frente. Depois de décadas de gestões tucanas, ele encontrou o governo com caixa para fazer investimentos e uma grande relação de obras já licitadas, e que devem, portanto, ser inauguradas nos próximos anos. Caso queira disputar a reeleição, não há ainda nenhuma força relevante na oposição capaz de lhe fazer frente. Na hipótese de um projeto político mais ambicioso, no entanto, vai ter o desafio de construir uma identidade própria sem perder a ligação com Bolsonaro e seus seguidores mais radicais. Até para um engenheiro, campo de formação de Tarcísio, vai ser uma obra desafiadora.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2023, edição nº 2850