Um enredo que supera qualquer folhetim ou novela policial, e que surpreendeu até mesmo os investigadores, tomou conta do país nesta semana. Após um ano e dois meses e mais de cinco mil páginas de inquérito, a deputada federal Flordelis (PSD-RJ) foi apontada, na última segunda-feira (24), como a mandante do assassinato do pastor Anderson do Carmo de Souza, marido da parlamentar e vítima de uma emboscada a tiros dentro da garagem da própria casa na madrugada de 16 de junho do ano passado, em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro.
Egressa da comunidade do Jacarezinho, na Zona Norte da capital fluminense, Flordelis dos Santos Souza, 59, ganhou fama através da filantropia: adotou mais de 50 crianças e adolescentes ao longo das últimas décadas – segundo a Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Maricá, um dos filhos socioadotivos (quando uma adoção não é concluída judicialmente) foi o próprio pastor Anderson do Carmo, aos 15 anos de idade, enquanto sua futura mulher e algoz tinha 31. “Ela pediu autorização à mãe de Anderson para levá-lo a orar nos montes”, declarou a VEJA Ângelo Máximo, advogado que representa a família de Anderson e é assistente de acusação no processo em que a cantora gospel se tornou ré nesta semana. “De lá, eles regressaram com um relacionamento amoroso”, prosseguiu.
Antes de seguirem tortamente os passos de Jesus às montanhas, contudo, o adolescente Anderson se envolvera amorosamente com a filha biológica de Flordelis, Simone dos Santos Rodrigues, uma das cinco pessoas presas na Operação Lucas 12, desencadeada pela DH e pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco). Todos eles formaram um complô que, supostamente, teria se iniciado em 2018, e cujo objetivo era um só: matar o marido da deputada federal.
Era só o começo de um enredo com nuances surrealistas que envolve troca de casais entre os próprios membros da família, trapaças, roubo de dinheiro, envenenamento, falsificação de documentos — escrita por Flordelis e endereçada ao filho adotivo Lucas de Souza para que ele assumisse integralmente a autoria do crime –. O resultado de tamanha conspiração é amplamente conhecido: o assassinato do líder de um clã familiar disfuncional, segundo apontam as investigações.
Embora alertado por dois filhos mais próximos e por uma sincronização de mensagens com detalhes do plano de homicídio em seu iPad, Anderson não acreditou que a mulher com quem convivia há 26 anos e pela qual era apaixonado fosse capaz de assassiná-lo: “é Deus no céu e Flordelis na Terra”, costumava dizer.
Mas o Relatório Final de Inquérito do caso aponta Flordelis como uma pessoa psicologicamente manipuladora, que instigava divisões de facção na família, tratava Anderson com desprezo e que formou uma rede entre os filhos prediletos para tramar o homicídio do pastor.
No documento, Allan Duarte, delegado titular da DH de Niterói, classificou a teia familiar de intrigas como “difícil de imaginar ou de se acreditar”. “A evolução da investigação traz à luz o que era oculto e desconstrói toda a imagem altruísta, de decência e de caridade que é passada ao conhecimento público, tornando assim essa trama cada vez mais viável e, consecutivamente, comprovável”, escreveu o chefe das investigações.
“Era uma família com hábitos estranhos. Transavam entre si, uma coisa totalmente depravada no âmbito familiar, algo bem longe de uma liberdade sexual”, disse a VEJA um investigador profundamente familiarizado com as investigações.
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Clique e AssineTrês testemunhas apontaram que essas práticas inusitadas eram algo comum no Ministério Flordelis. “É uma seita com aparência de congregação religiosa (…) Em nada tem a ver com aquilo escrito na bíblia”. Duas delas apontaram, também, práticas sexuais entre os membros da igreja. Outra depoente disse que Flordelis era frequentadora de uma casa de swing (estabelecimento onde ocorrem trocas de casais com fins sexuais) na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, em 2007, onde a pastora evangélica teria um quarto reservado e exclusivo. Há, ainda, a hipótese de que a última noite de Anderson tenha envolvido o passeio do casal por uma casa desse gênero em Botafogo, na Zona Sul – a polícia, no entanto, não confirmou isso nas investigações.
A trajetória de filantropa da adoção até líder evangélica e cantora gospel é creditada aos esforços de gestão e de administração de Anderson, que controlava rigorosamente as finanças dos templos evangélicos e da casa. As brigas do casal pelas finanças começaram a ser pontuais a partir de 2006 e, de acordo com depoimento de uma das filhas adotivas, os conflitos por dinheiro entre Anderson e Flordelis recrudesceram em 2016. Presa no começo da semana, Marzy Teixeira da Silva, outra filha adotiva do casal, teria sido retaliada pelo pastor por ter furtado R$ 5 mil de um cofre, o que teria despertado um sentimento de vingança nela. O furto teria sido executado sob ordens de Flordelis, de acordo com um dos depoimentos de outro filho, o vereador Wagner Andrade Pimenta, também conhecido como Misael.
A conspiração para matá-lo, no entanto, teria sido desencadeada em meados de 2018, quando comidas e bebidas do pastor passaram a ser envenenadas com “remedinhos”. As sucessivas tentativas de homicídio levaram o pastor ao hospital em pelo menos seis ocasiões, diz a polícia. Alguns filhos, que consumiram comidas e bebidas destinadas a Anderson foram vítimas colaterais das sucessivas tentativas de envenenamento – a mulher de Carlos Ubiraci, preso na última segunda (24), chegou a ficar internada por cinco dias após consumir uma bebida oferecida pelo pastor e que havia sido feita para ele.
Mas ele era “ruim de morrer”, como resumiu Simone, ex-namorada de Anderson na adolescência, pouco antes de ele subir nos montes com Flordelis. “Ele não morre nunca”, teria dito a filha biológica de Flordelis a interlocutores da família. O envenenamento falhara; o próximo passo seria armar uma suposta tentativa de assalto a tiros. O escolhido como executor foi Flávio dos Santos Rodrigues, 38, cuja personalidade é descrita como violenta em diversos depoimentos dos irmãos, a ponto de esfaquear as costas de um dos membros do clã familiar com uma tesoura durante uma briga. Ele também ameaçou a ex-mulher, enviando-lhe uma foto de uma pistola 9mm e de munições.
“Nessa toada, a cabeça de Flávio foi sendo envenenada por Flordelis. Foi dito a ele que uma das irmãs de adoção havia sido alvo de abuso sexual, e foi assim que ele justificou a motivação do crime ao prestar depoimento confessando ser o autor do assassinato. Houve indícios de ocorrência de abuso sexual durante as investigações, mas isso não se comprovou efetivamente”, disse o promotor do Gaeco, Sergio Lopes Pereira, a VEJA.
Daí, talvez, venha a explicação para tantos tiros disparados na região genital do pastor Anderson. “Isso denota um crime de ódio”, prosseguiu o promotor.
Embora negue as acusações, Flordelis se recusou a conceder entrevista. Na quarta, 26, a deputada, que virou ré no começo da semana por ser a mentora do assassinato do marido, foi flagrada por VEJA descumprindo medidas judiciais determinadas pela 3ª Vara Criminal de Niterói.