O líder indígena Paulo Marubo só pode conversar sobre as invasões frequentes nas terras de sua aldeia quando está fora de casa, em lugar seguro. É que o local onde dorme o coordenador-geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) está cercado de criminosos — entre eles companheiros dos homens que assassinaram a tiros o indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips, em 5 de junho. O representante jurídico da Univaja, Eliésio Marubo, já não divulga mais seu paradeiro desde o crime e anda acompanhado de seguranças, mas jura que não vai diminuir o tom das críticas à violação do seu território e à inação dos órgãos do governo. Passados dois meses do duplo homicídio que provocou enorme comoção aqui e no exterior, seguido por promessas de que a tragédia não seria em vão, o clima de terror no Javari só fez aumentar, como demonstram os casos dos líderes da Univaja. Assim como os indígenas, servidores federais relatam uma situação de insegurança permanente.
Em consequência direta disso, há pouco mais de uma semana o principal coordenador da Funai na área, Leandro Ribeiro do Amaral, pediu demissão — foi o sexto a ocupar o cargo em três anos e meio de governo Jair Bolsonaro (PL). O problema central para quem representa o Estado na região é que as invasões e ameaças de caçadores, pescadores ilegais, garimpeiros, madeireiros e traficantes de drogas são constantes, sem que os indigenistas tenham qualquer proteção: a maior base da Funai, onde fica a Frente de Proteção Etnoambiental, que era coordenada por Amaral, foi atacada a tiros oito vezes desde 2018. O coordenador ocupava o cargo como substituto, a mesma condição da maioria de seus antecessores, o que demonstra a instabilidade com que exercem as suas funções. A Funai não preenche os postos vagos em sua estrutura — 1 043 em todo o país, quase o mesmo número de servidores trabalhando (1 480).
Mesmo com toda a pressão decorrente dos assassinatos de Dom e Bruno, as ações do governo federal continuam longe de estarem à altura do desafio. Na mais recente intervenção, o Exército fez uma operação de combate à mineração ilegal no Rio Jandiatuba após servidores da Funai terem sido abordados por garimpeiros, que foram até a base e perguntaram quantos homens atuavam no local. Apesar de ter apreendido materiais de trabalho, o Exército não destruiu maquinários e a ação não resultou em prisão. Com a operação encerrada, paira o temor entre os servidores de que os criminosos voltem, agora irritados com a operação.
No combate a essas ilegalidades, o governo federal peca em insistir em ações pontuais e por demorar a agir frente a denúncias. Poucos dias após o desaparecimento de Bruno e Dom, por exemplo, servidores solicitaram o envio imediato de uma força-tarefa de segurança em apoio aos funcionários e à população na Terra Indígena do Vale do Javari. A direção da Funai demorou cerca de um mês para pedir ajuda da Força Nacional de Segurança Pública. O socorro só chegou à região nas últimas semanas (inicialmente um efetivo de sete agentes, depois um reforço de treze homens), mas não têm sequer meio de transporte para trabalhar por lá. “É uma incompreensão e incompetência gigantescas”, critica Eliésio Marubo.
A despeito da importância do Vale do Javari como a maior concentração de povos indígenas isolados no mundo, a Funai tem falhado seguidamente na responsabilidade de emitir portarias que proíbam o acesso a essas áreas. A gestão do atual presidente do órgão, Marcelo Xavier, deixou de renovar essas proibições e passou a publicar portarias que valem por apenas seis meses, contribuindo para aumentar o buraco negro da fiscalização. Na região de Mamoré-Grande, no sul do Amazonas, o mais recente povo isolado identificado está desprotegido há onze meses, sem que o órgão tome providências para fechar a área. “Na prática, Xavier realmente obstaculizou qualquer tipo de reconhecimento de terra indígena”, afirma Fernando Vianna, presidente da organização Indigenistas Associados (INA). Há duas semanas, Xavier experimentou na pele uma reação forte a essa política: ele teve de abandonar um evento sobre a questão indígena em Madri após ser hostilizado por um ex-servidor da Funai, que protestou contra as mortes de Dom e Bruno e o chamou de “bandido” e “miliciano”.
Com quatro suspeitos presos pelo duplo homicídio, a Polícia Federal ainda trabalha para identificar eventuais mandantes e cúmplices. Para quem mora na área, porém, há uma impressão de que tudo continua muito igual ao cenário que levou aos crimes. A pesca ilegal, atividade que motivou os assassinatos, permanece a todo o vapor. As cargas ilegais de tracajás, o quelônio típico da região, continuam chegando normalmente ao mercado municipal de Atalaia do Norte, a cidade mais próxima do local dos crimes, onde são vendidos por mais de 100 reais por animal. Todos ali sabem que eles são pescados dentro de terra indígena, pois a atividade predatória já fez com que eles sejam raros fora dela. E todos temem novas mortes como as de Dom e Bruno. Se isso ocorrer, serão tragédias mais do que anunciadas.
Resposta
Questionada, a Funai disse, por meio de uma nota enviada após o fechamento da edição impressa, que pediu o reforço da segurança na região do Vale do Javari a diversos órgãos federais e estaduais, entre eles o o Comando Militar da Amazônia, a PF e o Ministério da Justiça. O órgão diz que atualmente há “cerca de 30 agentes” da Força Nacional de Segurança Pública atuando no suporte às atividades da Funai na região. Segundo o órgão, um serviço permanente de vigilância está em processo de contratação, assim como a compra de coletes à prova de bala.
A fundação também informou que selecionou 13 servidores para compor uma força-tarefa que deve aliviar a sobrecarga de trabalho aos indigenistas que estão na região. A Funai diz que há um novo processo seletivo em andamento, que deve resultar em “um total de 27 servidores atuando em esquema de revezamento na região”. O órgão também aguarda a autorização do Ministério da Economia para a realização de um concurso que visa preencher vagas ociosas.
Sobre a confirmação de índios isolados a região de Mamoré Grande, a Funai informou que monitora a situação do grupo indígena, que ocupa algumas áreas da Reserva Extrativista do Médio Purus (Resex-MP). “Foram realizadas três expedições sucessivas na região, as quais atestaram a presença de indígenas isolados nas proximidades do Igarapé São Benedito, dentro da reserva. A partir dessas informações, a Funai tem realizado interlocução com a gestão da RESEX-MP e as comunidades ribeirinhas próximas, visando conscientização dos riscos envolvidos a todas as partes (principalmente epidemiológicos e de segurança) e compromisso em evitar-se as áreas em que se constatou a presença de indígenas isolados”, diz a Funai, em nota.
Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801