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Documentos revelam pagamentos de construtoras à maior milícia do país

Apreensão inédita, a que VEJA teve acesso, mostra que MRV, Tenda e Direcional desembolsam R$ 178 000 por mês para não ser incomodadas pelos bandidos

Por Adriana Cruz
Atualizado em 27 jun 2022, 11h23 - Publicado em 24 jun 2022, 06h00

Em um naco considerável da Zona Oeste do Rio de Janeiro, um território de quase 500 quilômetros quadrados que abrange dezesseis bairros com mais de 1 milhão de habitantes, moradores e empresários que ali decidiram investir vivem sob as leis impostas pela maior milícia do país, o Bonde do Zinho, formada em grande parte por policiais e ex-policiais que dão as cartas espalhando o terror. Naquelas bandas, onde o poder paralelo da bandidagem fincou sua bandeira no início dos anos 2000, quase toda atividade comercial só é possível com o crivo dos chefes da quadrilha. É bem sabido que esses marginais movimentam vultosas somas de dinheiro com negócios variados, mas até hoje não se conheciam as cifras nem tampouco as graúdas vítimas das extorsões que praticam e que lhes garantem um bom ganha-pão. Pois a maior apreensão já feita na contabilidade do bando, conteúdo ao qual VEJA teve acesso com exclusividade, pela primeira vez lança luz sobre as engrenagens financeiras do grupo que obriga uma parcela da população carioca a ter a barbárie como regra.

A operação, conduzida pela Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE), rastreou no quartel-general dos criminosos material que aponta um faturamento de 30 milhões de reais mensais, dinheiro que aflui, entre outras fontes, do caixa de pequenos estabelecimentos e do de algumas das maiores empresas de construção civil do país. Todos pagam pedágio aos bandidos para poder tocar seus negócios na área. Na batida policial, os suspeitos fugiram, mas deixaram para trás livros-caixa, dezesseis pen drives e um HD de computador nos quais se encontram claras referências a “entradas” de recursos depositados por três gigantes do mercado imobiliário — MRV, Tenda e Direcional desembolsam, de acordo com a planilha, um total de 178 000 reais por mês para não ser incomodados. Outros 58 000 reais aparecem sob a rubrica “empreiteiros”.

NO PAPEL - “Entrada” de dinheiro pago por empresas (acima) e lista de fuzis: provas de poder -
NO PAPEL – “Entrada” de dinheiro pago por empresas (acima) e lista de fuzis: provas de poder (./.)

A reportagem de VEJA ouviu pessoas que exercem seu ofício na permanente mira dos marginais. “Se não pagarmos, os bandidos implantam o horror e fica inviável tocar as obras”, admite um engenheiro da MRV, sob a condição de anonimato. Muitos empresários que atuam na região acham caminhos alternativos para executar o pagamento de forma discreta, não raro através de firmas de segurança terceirizadas já contratadas. Um importante representante do ramo conta que, de tão comum, a extorsão se tornou apenas mais um item entre os custos das companhias. “As construtoras viraram reféns desse sistema”, resume. Que fique claro: do ponto de vista legal, ao pagar aos marginais, não estão incorrendo em crime. “Elas são vítimas”, esclarece o delegado titular da DRE, Marcus Amim. Procuradas, as três construtoras negam qualquer pagamento à milícia.

De posse dessa inédita montanha de documentos, o objetivo é sufocar financeiramente a organização. “Queremos saber quem está lavando esses recursos e vamos seguir o dinheiro”, afirma Amim. Um ponto central é descobrir qual uso o bando pretendia dar a um galpão de 45.000 metros quadrados no valor de 14 milhões de reais, na mesma Zona Oeste, cujas tratativas estavam em pleno vapor. O material apreendido mapeia ainda os multifacetados tentáculos do grupo: o lucro vai do comércio ilegal de cigarros a cobrança de “pedágios” de motoristas de vans e mototaxistas, grilagem de terras e vendas de gás e internet clandestina. Até os bicheiros pagam 40.000 reais mensais para explorar as máquinas de caça-níqueis na área.

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Tamanha engrenagem é movimentada por cerca de 500 homens, que contam com um arsenal do qual agora se conhece a envergadura: a polícia recolheu uma lista citando 39 fuzis, vinte deles do modelo AR-15. No topo da hierarquia está Luis Antonio da Silva Braga, o Zinho, irmão de Wellington da Silva Braga, o Ecko, morto em uma ação policial no ano passado e que até então batizava a milícia que se apoderou da Zona Oeste depois de uma tal Liga da Justiça ter sido desmantelada após a prisão de dois de seus comandantes: o ex-vereador Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, e o ex-deputado estadual Natalino José Guimarães. Ocupar o alto escalão miliciano com figuras da política deixou de ser praxe para ceder lugar a outra tática — atualmente, essa e outras quadrilhas escolhem a dedo candidatos que as representam e eles, e só eles, recebem autorização para fazer campanha em seu pedaço. “Nenhum político transita na região de uma milícia se não tiver o aval dos chefes”, afirma o sociólogo José Cláudio Alves.

Esses bandos que se alastram na paisagem já dominam 57% do território no Rio, segundo um levantamento da Universidade Federal Fluminense em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP. Um dos fatores que levaram à expansão do Bonde do Zinho é a cooptação dos traficantes de drogas, os mesmos criminosos que os grupos paramilitares diziam combater para justificar sua existência. Hoje, a organização de Zinho trava uma sangrenta disputa com um braço dissidente, tentando expandir seus negócios para outros municípios do estado. Conhecer as entranhas financeiras da quadrilha é vital para frear o projeto. Mas é preciso mais do que isso: colocar de uma vez por todas os bandidos atrás das grades e devolver a civilidade a uma fatia da cidade que vive à sombra do medo.

Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795

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