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Disputa política e apuração de irregularidade elevam temperatura na Saúde

Ministério da Justiça responsabiliza ministra Nisia Trindade após investigação, ao mesmo tempo que políticos pedem o cargo dela em troca de apoio ao governo

Por Hugo Marques Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Laísa Dall'Agnol Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h25 - Publicado em 24 jun 2023, 08h00
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  • Em 2014, o Ministério da Justiça contratou a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para fazer uma pesquisa sobre o uso de drogas no Brasil. Concluído em 2019, já durante o governo de Jair Bolsonaro, o levantamento ouviu 16 000 pessoas e constatou que 9,9% dos brasileiros na faixa etária de 12 a 65 anos já haviam experimentado alguma substância ilícita. O trabalho, porém, foi considerado tecnicamente superficial, uma vez que a metodologia utilizada impediria a comparação com resultados anteriores, prejudicando o objetivo final, que era descobrir se o consumo de drogas no país estaria ou não em escala ascendente. Na época, houve bate-boca e troca de acusações entre autoridades. A confusão acabou resultando em um processo administrativo, concluído no fim do ano passado, que determinou que a Fiocruz devolvesse 11 milhões de reais aos cofres públicos. O caso provavelmente passaria despercebido se não fosse um detalhe: entre as autoridades apontadas como responsáveis pelas irregularidades está Nísia Trindade, atual ministra da Saúde.

    PROCESSO - Fiocruz: aguardando posicionamento do Tribunal de Contas
    PROCESSO - Fiocruz: aguardando posicionamento do Tribunal de Contas (Peter Ilicciev/Fiocruz Imagens/.)

    Antes de assumir o posto no governo Lula, a ministra presidiu a Fiocruz. Para a Controladoria-Geral da União (CGU), que também examinou o contrato e endossou a apuração, a Fundação não entregou o trabalho que havia sido combinado e não comprovou a aplicação dos recursos que foram repassados pela União. “Esta inexecução trouxe prejuízos para o planejamento da Política de Drogas”, diz o relatório, que também responsabiliza Paulo Gadelha, outro ex-presidente da Fiocruz. “Entendemos que foram esgotadas as providências administrativas com vistas ao ressarcimento do dano ao erário”, conclui o relatório do Ministério da Justiça. Segundo uma autoridade que acompanhou o processo, o governo comunicou aos dois ex-chefes da Fiocruz o resultado da investigação e enviou no fim do ano passado as guias de recolhimento dos valores a serem devolvidos, mas ninguém se manifestou. O caso foi enviado ao Ministério Público Federal e ao Tribunal de Contas da União — uma dor de cabeça a mais para a ministra da Saúde.

    EM CAMPANHA - Doutor Luizinho: o deputado do PP (à dir.) é cotado como o provável substituto
    EM CAMPANHA - Doutor Luizinho: o deputado do PP (à dir.) é cotado como o provável substituto (./Reprodução)

    Nos últimas semanas, Nísia Trindade também está no centro de uma disputa política. Primeira mulher a ocupar o cargo, a cientista comandou a Fiocruz durante a pandemia do coronavírus, período em que teve de lidar com quatro ministros da Saúde e enfrentar o negacionismo do governo Bolsonaro. Saiu-se muito bem. O problema agora é o pragmatismo do governo Lula. O Ministério da Saúde é considerado pelos políticos como a joia da coroa. A pasta tem um orçamento anual de 180 bilhões de reais, recursos que podem ser aplicados, entre outras coisas, para construir hospitais, comprar medicamentos e ambulâncias e equipar unidades de atendimento em todo o Brasil — dos maiores aos menores municípios. É, portanto, um imenso ativo eleitoral, já que interfere diretamente na vida das pessoas. A inauguração de um posto de saúde numa cidade pequena, por exemplo, pode ser o diferencial entre a vitória e a derrota nas eleições do ano que vem.

    O Ministério da Saúde também será responsável neste ano pela liberação de metade de todas as emendas parlamentares — recursos do orçamento federal que deputados e senadores destinam às suas bases eleitorais. São mais de 10 bilhões de reais. Gerir todo esse dinheiro — investimentos e emendas — confere ao chefe da pasta um poder político gigantesco. É isso o que o chamado Centrão quer do governo em troca de apoio no Congresso. Desde o início do governo, há uma reclamação generalizada sobre a demora do ministério para liberar as verbas. Passada a metade do ano, apenas 3,3 bilhões de reais foram pagos, isso sem contar que 10% das emendas estão bloqueadas por “impedimentos técnicos”, como a falta de projetos ou de documentos ou problemas na indicação do destinatário, entraves que os interessados classificam como apenas “burocráticos”. Alguns políticos juram que é má vontade. “Já tomamos as providências dentro do prazo, atendendo às demandas dos municípios para regularizar a situação”, afirma o deputado federal e ex-ministro da Saúde Ricardo Barros (PP-PR).

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    Nísia foi escolhida por Lula por sua capacidade técnica e como contraponto ao governo anterior. Isso, no entanto, é visto por alguns, inclusive aliados do petista, como um problema. A suposta falta de traquejo da ministra estaria dificultando a relação do Executivo com o Legislativo, o que seria absolutamente desnecessário. Lembram que não é incomum o ministério ser comandado por políticos, como Humberto Costa (no primeiro governo Lula), Alexandre Padilha (com Dilma Rousseff), Ricardo Barros (com Michel Temer) e Luiz Henrique Mandetta (com Bolsonaro). “Ela é um nome técnico excelente, mas ser ministro exige bom trabalho político também. Ela não recebe parlamentares, não está andando com as emendas”, diz reservadamente um deputado petista, que afirma que, por causa disso, os parlamentares estão enfrentando uma espécie de “crise de abstinência”. Esse tipo de argumento costuma ser sacado quando um ministro entra em processo de fritura.

    CAPILARIDADE - Mais Médicos: programas e verbas bilionárias do ministério fazem a diferença na hora das eleições
    CAPILARIDADE - Mais Médicos: programas e verbas bilionárias do ministério fazem a diferença na hora das eleições (Alejandro Zambrana/Sesai MS/.)

    A pressão para tomar o Ministério da Saúde encontra sustentação no presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), que já transmitiu a mensagem diretamente ao próprio Lula — o presidente, por enquanto, não deu nenhum sinal de que irá ceder. A fricção, assim, vai aumentando. Um alvo secundário da artilharia dos deputados é o ministro das Relações Institucionais e ex-titular da Saúde, Alexandre Padilha, um dos responsáveis pela indicação de Nísia e considerado um forte obstáculo à pretensão de removê-la. Na segunda-feira 19, Padilha disse a jornalistas que, embora nunca tenha ouvido de Lira qualquer pedido de substituição na pasta, é normal haver “jogo de pressão”. Ressaltou, no entanto, que o Ministério da Saúde “não está na cota de qualquer partido”. Na quinta-feira, Nísia admitiu ser alvo de pressão política e ressaltou que a sua permanência no cargo “é uma prerrogativa do presidente” e que está “muito tranquila”. Auxiliares do presidente não descartam a hipótese de Lula anunciar uma minirreforma ministerial tão logo retorne da viagem ao exterior. O pacote de mudanças, além da Saúde, atingiria outras pastas, como a do Turismo, ocupada por Daniela Carneiro.

    DE SAÍDA - Daniela Carneiro: a chefe do Turismo já foi alertada de que não permanecerá no cargo
    DE SAÍDA - Daniela Carneiro: a chefe do Turismo já foi alertada de que não permanecerá no cargo (Víctor Lerena/EFE)
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    Embora oficialmente Lira nunca tenha pedido a troca da ministra e Lula nunca tenha pensado em substituí-la, nos corredores do Congresso já circula até o nome do provável sucessor de Nísia: o deputado federal Luiz Antônio Teixeira Junior, o Doutor Luizinho (PP-RJ). Atual secretário de Saúde do Rio de Janeiro, o parlamentar é médico, teve um papel importante no Congresso durante a pandemia e é homem de confiança do presidente da Câmara. Recentemente, ele apareceu em rede nacional no programa do PP ao lado do senador Ciro Nogueira (PP-PI). Não foi por acaso. Os parlamentares do Centrão destacam que o deputado reúne todos os requisitos para assumir o Ministério da Saúde: tem boa formação técnica, é respeitado no meio e conhece bem as necessidades políticas dos colegas. Contra ele, apenas um detalhe: na campanha do ano passado, esteve ao lado de Jair Bolsonaro — mas nada que o pragmatismo não consiga superar.

    Nísia Trindade foi procurada por VEJA para falar sobre o processo administrativo que pede a devolução de 11 milhões de reais aos cofres públicos. A ministra preferiu não se pronunciar. Paulo Gadelha, o outro acusado, não foi localizado. Em nota, a Fiocruz informou que ainda não foi notificada “de novas decisões”, que em nenhum momento procedimentos administrativos ou financeiros relacionados à pesquisa foram objeto de questionamento pelo financiador e que aguarda o posicionamento do Tribunal de Contas da União. “Considerando todas as evidências já apresentadas, a Fundação acredita que a decisão será favorável à pesquisa”, informou a entidade. Embora não seja nada confortável para uma gestora ser apontada como responsável pelo não cumprimento de um contrato público, esse, ao que parece, é o menor dos problemas da ministra.

    NOTA ENCAMINHADA PELA ASSESSORIA DA MINISTRA DA SAÚDE, NÍSIA ANDRADE

    Sobre a matéria “Temperatura Máxima” veiculada pela Veja nesta sexta-feira (23/06), o Ministério da Saúde informa:

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    O 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira é a mais atualizada e representativa pesquisa do país sobre o tema, já tendo sido utilizado como referência em mais de 300 estudos e publicações. Foi a primeira edição que incluiu em sua abordagem a realidade dos municípios de médio e pequeno porte, rurais e faixas de fronteira. A metodologia empregada foi submetida, aprovada e publicada nos anais do Joint Statistical Meeting, reunião das diversas Associações Estatísticas Mundiais. A prestação de contas foi encaminhada à Senad/MJ em junho de 2018.

    1. A Fiocruz foi a vencedora do edital lançado em 2014 pela Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad) do Ministério da Justiça para a realização da pesquisa. O levantamento foi concluído em 2017 e aprovado pelo corpo técnico da Senad. O resultado da pesquisa somente foi questionado por questões ideológicas e políticas do secretário.

    2. Em 2019, a discordância foi levada à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal da Advocacia-Geral da União (AGU), onde foi acordado entre as partes a divulgação dos resultados da pesquisa, considerando o mérito científico, sua importância para a sociedade e para a formulação de políticas públicas. Os resultados estão disponíveis no Repositório Institucional da Fiocruz (Arca: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614), onde também pode ser acessada a nota da AGU com a autorização de divulgação.

    3. Após a primeira decisão favorável à Fiocruz, estavam previstas mais duas etapas na Câmara de Conciliação em que seriam analisados a metodologia e o financiamento da pesquisa. Contudo, o processo de mediação da AGU foi interrompido em 2022 sem que as próximas etapas fossem realizadas.

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    4. Seguindo os trâmites regulares da administração pública federal, a prestação de contas do projeto foi encaminhada pela Senad ao Tribunal de Contas da União no fim de 2022 e não há decisão até o momento. Após a Fiocruz reiterar à pasta a lisura do processo e credibilidade do estudo realizado, o Ministério da saúde está convicto da ratificação por parte do TCU.

    Publicado em VEJA de 28 de Junho de 2023, edição nº 2847

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