Depois de semear muita controvérsia, o debate sobre a execução de pena na segunda instância parecia encerrado em novembro de 2019, quando o Supremo Tribunal Federal determinou que isso só seria possível após o trânsito em julgado do processo. Diante da repercussão negativa da decisão, que colocou em liberdade detentos graúdos como o ex-presidente Lula, o presidente do STF, Dias Toffoli, levantou a hipótese de o Congresso mudar o entendimento a partir da aprovação de emenda à Constituição. Menos de um ano depois, a sugestão se materializou em uma PEC, que terá prioridade para entrar na pauta assim que o Congresso retomar as sessões presenciais (as previsões mais otimistas falam em agosto).
Em vez de ser uma boa notícia, o negócio virou um exemplo de emenda que saiu pior que o soneto. Na versão atual da proposta, além dos processos criminais, a PEC propõe o trânsito em julgado no segundo grau em todos os processos, incluindo trabalhistas e tributários. Cercada de boas intenções (afinal, quem pode ser contra a ampliação ao cerco aos malfeitos no país?), a PEC tem o apoio até de algumas das vozes mais sensatas do Congresso. Em uma recente conferência on-line da Câmara de Comércio França-Brasil, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), defendeu a proposta. “Não são só políticos, também temos empresários corruptos”, justificou. Além de aumentar o cerco à impunidade, a ideia teria o mérito de desafogar a pauta do STF, para onde acabam indo muitos casos.
Na prática, porém, a intenção pode virar uma bomba capaz de provocar estragos consideráveis na economia. O tamanho da encrenca embutida no pacote pode ser medido em um número: em média, por ano, cerca de 240 000 casos trabalhistas e tributários aguardam decisões definitivas nas Cortes superiores, segundo estimativa do Conselho Nacional de Justiça. Apenas o escritório de advocacia Machado Meyer, um dos maiores do país, tem cerca de 1 800 processos sobre tributos nessa fase, somando 25 bilhões de reais em litígios que tramitam na segunda instância. Na nova PEC, o réu tem direito a recorrer de uma condenação, mas isso não garante que o pagamento será adiado.
A proposta, de autoria de Alex Manente (Cidadania-SP) e relatada por Fábio Trad (PSD-MS), prevê instrumentos para atenuar o impacto da medida, como a possibilidade de Cortes superiores revogarem uma decisão “teratológica” — jargão jurídico para sentenças claramente absurdas — e a previsão de que a lei não afetará os casos que estejam atualmente em tramitação na Justiça. “Todo mundo ficará prevenido, não vai haver surpresa nem risco. Quem tem razão vai poder executar a decisão muito antes e os recursos protelatórios diminuirão”, defende o ex-presidente do STF Cezar Peluso, que vê na PEC a ressurreição de uma proposta sua, que acabou sendo arquivada em 2018.
A discussão já provoca previsíveis e justos calafrios no meio empresarial, sobretudo em um momento de enorme fragilidade econômica. Flávio Rocha, dono da Riachuelo, é um dos que fazem ressalvas ao projeto, chamando atenção para a insegurança jurídica que isso pode criar. “Nosso objetivo é tornar o país um polo que atrai investimentos e não um que repele”, afirma. Já Sérgio Zimerman, fundador da Petz, uma das maiores redes de pet shop do país, com 112 lojas, levanta outro ponto: “Não que eu aprove a prisão em segunda instância e seja contra algo que afeta o meu bolso, mas as decisões da área trabalhista são muitas vezes reformadas em instâncias superiores”.
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Clique e AssineAlgumas estatísticas respaldam a observação do empresário. Em 2019, 39% das decisões de segundo grau tiveram recursos ao Tribunal Superior do Trabalho. Desse montante, 20% foram parcial ou integralmente acolhidos. “Se a PEC for aprovada, o dinheiro seria liberado antes do fim dos recursos, é um grande problema”, afirma Otávio Pinto e Silva, professor da Faculdade de Direito da USP. “Deve haver algum mecanismo para assegurar o direito ao contraditório e o mínimo de segurança de que o trânsito em julgado em segunda instância não vai agredir de maneira injusta o patrimônio de quem quer que seja”, diz Noemia Garcia Porto, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.
No Congresso, que tem temas urgentes a tratar, como a reforma tributária, a PEC já provoca reação e drena energia. De um lado, enfrenta a previsível resistência do Centrão, bloco que abriga muitos parlamentares enrolados com a polícia e a Justiça. Já o PT, que também era contra a execução de pena em segunda instância quando queria tirar Lula da cadeia, agora acena com o voto favorável no formato da PEC ampliada, com a inclusão de processos trabalhistas e tributários. Uma coisa é certa: a discussão, que desde 2016 mobiliza boa parte da sociedade, volta agora sob a forma de um “frankenstein” legislativo. Isso não só não encerra como ainda amplia a polêmica. Da forma como vem sendo colocado, o retorno da segunda instância corre o risco de nunca sair do papel.
Publicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695