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Crianças na mira

Jovens de comunidades pobres do Rio de Janeiro relatam uma rotina que parece de um país em guerra

Por Maria Laura Canineu
Atualizado em 21 ago 2019, 22h25 - Publicado em 21 ago 2019, 21h50

“[…] eu tava na escola no pátio fazendo educação física, aí de repente o helicóptero passou dando tiro pra baixo, aí todo mundo correu para o canto das arquibancadas […].”

“Quando nós chegamos na escola, ela está cheia de furo de tiro e tudo revirado […], eu não gosto de operação porque eu não tenho aula”.

“Em dia de confronto eles invadem as casas […] perdi uma prima de bala perdida pois ela estava brincando de boneca e morreu sem ter seu direito de ser criança […]”

Esses são trechos de cartas escritas não por crianças em um país em guerra, mas do complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Retratam a realidade de milhares de crianças em diversas favelas do estado. Operações policiais nessas comunidades frequentemente terminam em mortes de suspeitos e civis inocentes, incluindo crianças.

Maria Laura Canineu
A pesquisadora Maria Laura Canineu, diretora do escritório da Human Rights Watch no Brasil. Colunista da revista Veja. (VEJA/VEJA)
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Durante a última década, a Human Rights Watch conduziu pesquisas aprofundadas sobre como a violência nas favelas atinge famílias, comunidades e a própria polícia. Concluímos que as facções criminosas geram muita violência, mas o problema é agravado por uma política de segurança baseada em incursões militares nas favelas que não resultam no desmantelamento do crime. Embora muitos homicídios cometidos por policiais neste contexto constituam legítima defesa, muitos outros são execuções extrajudiciais.

Dyogo Costa, 16 anos, foi assassinado no dia 12 de agosto, em uma comunidade em Niterói. “Você matou meu neto”, disse seu avô a um policial que estava junto ao corpo. “Seu neto é traficante”, respondeu o policial sem fornecer qualquer prova. O avô negou veementemente a acusação e disse que Dyogo estava a caminho do treino de futebol e só tinha chinelos e uma chuteira em sua mochila.`

Na semana passada, líderes comunitários do Morro dos Prazeres me disseram que muitas crianças provavelmente perderão o ano letivo em razão da quantidade de aulas canceladas devido a operações policiais.

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A ideia de pedir que crianças escrevessem cartas partiu da organização Redes da Maré em cooperação com a Defensoria Pública do Rio. Em 12 de agosto, enviaram mais de 1.500 cartas ao Tribunal de Justiça como parte de uma ação civil pública iniciada em 2016 para exigir que a polícia tome medidas básicas para proteger os moradores da Maré.

Em 2017, um juiz determinou liminarmente que a polícia deixasse de conduzir operações nos horários que as crianças vão e voltam da escola, além de exigir ambulâncias durante incursões e a instalação de GPS e câmeras em viaturas. Essa decisão resultou na redução de aulas canceladas e de mortes por ação policial, segundo a Redes de Maré. Mas, este ano, outro juiz suspendeu a decisão, alegando que o poder executivo, não o judiciário, deveria estabelecer regras para a polícia. Após as cartas, o Tribunal de Justiça do Rio restabeleceu a liminar.

Tanto o presidente do Tribunal quanto o governador do estado questionaram a autenticidade das cartas, sem apontar qualquer indício para sua suspeita. Em resposta às cartas e a recentes relatos sobre mortes ocorridas durante operações policiais, o governador acusou defensores dos direitos humanos de dificultarem a ação da polícia.

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Abusos cometidos pela polícia acabam com a confiança das comunidades nos policiais que deveriam protegê-las. Como resultado, moradores estão menos propensos a colaborar com investigações. Os abusos também colocam outros policiais em risco de retaliação, inclusive quando fora de serviço. Suspeitos acreditando que serão executados optam por atirar ao invés de se entregar. Uma política de segurança pública que respeita os direitos humanos protege a polícia e a população.

“Queremos paz na Maré”, pede uma criança em uma das cartas. Isso não ocorrerá enquanto abusos policiais continuarem alimentando o ciclo da violência que atinge tão gravemente os próprios policiais, as comunidades e, especialmente, as crianças.

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