Controversa decisão do ministro Dias Toffoli enterra de vez a Lava-Jato
Em um evidente aceno político, ministro atende a solicitação dos advogados de Lula, anula provas do caso Odebrecht e termina de sepultar a operação
Pareceu obra de ficção de um roteirista de cinema afeito a viradas inverossímeis, mas foi assim que aconteceu, e poucas vezes na história política de qualquer país houve ascensão e queda tão espetaculares quanto a da Lava-Jato. Deflagrada em março de 2014, no governo da presidente Dilma Rousseff, a operação desbaratou um vergonhoso escândalo de corrupção, envolvendo o desvio de 40 bilhões de reais, resultado de contratos espúrios celebrados entre mais de trinta empresas e o poder público, conforme atestaram os próprios líderes do esquema, em confissões homologadas pela Justiça. O fato incontestável, porém, não impediu que os procuradores do Ministério Público Federal e o ex-juiz da 13ª Vara Criminal de Curitiba Sergio Moro, responsável pelas condenações, cometessem erros e exageros, desrespeitando o estado democrático de direito.
A guinada ocorreu depois que o hacker Walter Delgatti invadiu os celulares das autoridades e capturou conversas tenebrosas. Os diálogos, revelados pelo site The Intercept e aos quais VEJA teve acesso, evidenciaram passos ao arrepio da lei nos processos em curso. Na quarta-feira 6, a Lava-Jato sofreu um outro imenso revés. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) José Antonio Dias Toffoli tomou uma decisão com potencial para enterrar de vez a operação que pôs na cadeia gente grande.
O magistrado acatou uma reclamação da defesa de Lula. A alegação: uma decisão do STF vinha sendo ignorada pelas instâncias inferiores, ao não permitir acesso dos advogados ao conteúdo completo do acordo de leniência fechado pela construtora Odebrecht e de uma ação penal em que o presidente é acusado de receber vantagens indevidas da empresa. O ministro anulou as provas obtidas por meio do próprio acordo de leniência e dos programas de computador nos quais a empreiteira fazia contabilidade das propinas. Toffoli determinou ainda que seja investigado o possível envolvimento de agentes públicos no desrespeito à legislação, nas esferas cível, administrativa e criminal. Prontamente, a Advocacia-Geral da União (AGU) da gestão petista decidiu criar uma força-tarefa para apurar os fatos. O ministro da Justiça, Flávio Dino, anunciou que a Polícia Federal entrará nas investigações. E, de chofre, classificou a Lava-Jato como uma “página trevosa de nossa história”.
O despacho de Toffoli está ancorado em critérios técnicos, e uma decisão do STF não poderia mesmo desmanchar como castelo de areia, mas é inescapável a sensação de que o movimento atende a interesses de Lula, que passou 580 dias preso, depois da condenação de Moro, em abril de 2018. O tom do ministro, que lá atrás foi fervoroso defensor da Lava-Jato (e quase foi atingido por ela), mal disfarça agora a contaminação política, pela prosa inadequada e pelo teor mercurial de sua argumentação.
Em um texto longo, de 135 páginas, Toffoli disse se tratar de “um dos maiores erros judiciários da história do país”. E prosseguiu, carregando nas tintas: “Digo sem medo de errar, foi o verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições que já se prenunciava em ações e vozes desses agentes contra as instituições e ao próprio STF”. Ao fim, ao misturar alhos com bugalhos, e com sério risco de ofender os que foram torturados durante a ditadura militar, gritou em maiúsculas para definir a atuação dos procuradores: “uma verdadeira tortura psicológica, UM PAU DE ARARA DO SÉCULO XXI, para obter ‘provas’ contra inocentes”. Pelo éter das redes sociais, Sergio Moro, hoje senador pelo União Brasil do Paraná, reagiu imediatamente: “A corrupção nos governos do PT foi real, criminosos confessaram e mais de 6 bilhões de reais foram recuperados para a Petrobras. Esse foi o trabalho da Lava-Jato, dentro da lei, com as decisões confirmadas durante anos pelos Tribunais Superiores”.
Os efeitos imediatos da decisão ainda são incertos, mas abre-se caminho natural para pedidos de indenização de condenados, inclusive entre os que confessaram seus crimes, como os 77 executivos da Odebrecht que, em 2016, assinaram o acordo de leniência, no valor de 3,82 bilhões de reais, em valores não corrigidos. “Muitos dos delatores já pagaram suas multas e começaram a cumprir suas penas. Se tudo for anulado, eles ficam reabilitados do ponto de vista civil e criminal e podem pedir o ressarcimento dos valores pagos”, diz Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Prerrogativas, grupo de juristas críticos à Lava-Jato.
Por enquanto, o acordo de leniência da Odebrecht segue de pé, assim como todos os outros 48 que foram firmados nos últimos oito anos. Contudo, a decisão pode impactar outro julgamento protocolado no STF. Em março, três partidos políticos — PSOL, PCdoB e Solidariedade — ingressaram com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) questionando os acordos celebrados pelo MP de Curitiba, sem anuência da Controladoria-Geral da União. As legendas argumentam que, a exemplo de diversas delações premiadas, elas foram pactuadas “mediante situação de coação”. Se validada, a ação que está nas mãos do ministro André Mendonça poderia suspender as multas de quase quarenta acordos que totalizam cerca de 36 bilhões de reais. “É possível acabar com a cultura de corrupção das empresas sem destruí-las”, diz Walfrido Warde, advogado responsável pela ADPF. O ex-coordenador da força-tarefa da Lava-Jato, Deltan Dallagnol, rebate com veemência: “Seria uma derrota da sociedade, cada real que foi diminuído é um real que a sociedade perde, que poderia ser empregado na saúde, educação ou segurança”.
Goste-se ou não da forma como foi conduzida, a Lava-Jato prestou relevante serviço na luta anticorrupção no Brasil, em 61 fases e 321 prisões, com 244 condenações. Não se pode, de modo algum, deixar que os erros de processo (ocorreram, e foram muitos) e a postura do juiz Sergio Moro manchem a relevância de uma luta que mal começou e não pode ser abandonada. A ruidosa decisão de Toffoli, afago descabido a quem voltou ao Palácio do Planalto, não é capaz de apagar um capítulo tenebroso e inadmissível da recente história: havia um monumental esquema de corrupção no Brasil, efeito perverso da promiscuidade desavergonhada que se instalou entre os setores público e privado. Com a decisão de Toffoli, tudo indica ter sido cravado o último prego no caixão, mas não há como cobrir com o manto do negacionismo uma verdade inconveniente.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858