Com poder público conivente, milícias usam grilagem para ganhar terreno
O caso Marielle trouxe à luz a crescente ocupação irregular de nacos do Rio pelos grupos criminosos, que dominam vastos territórios na base do medo
Cunhado em meados do século XIX, o vocábulo grilagem encontra suas raízes numa antiga prática de armazenar documentos falsificados em uma caixa com a presença de grilos. A papelada era então corroída e se revestia de aparência envelhecida, ilegível, passando por verdadeira. Um truque para driblar a lei — nesse caso, em relação à usurpação de terras alheias, crime muito comum no Brasil desde os primórdios coloniais. Em nenhum outro lugar do país, porém, essa praga se dissemina hoje de forma tão escancarada, em flagrante deboche ao poder público, como no Rio de Janeiro, onde o motor da bandalha são as milícias, grupos cada vez mais articulados e poderosos. Sua área de atuação preferencial fica no entorno da Barra da Tijuca, na Zona Oeste, bairro da classe média que, junto a outros da região, compõe um vasto território onde os marginais dão as cartas, não raro com a conivência de autoridades, mantendo a população à sombra do medo.
O assunto voltou aos holofotes nacionais com as sórdidas revelações sobre o assassinato de Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes — de acordo com o relatório da Polícia Federal, foi justamente a ação da vereadora para barrar um projeto que frearia a grilagem em áreas sob a atuação dos acusados, os irmãos Chiquinho e Domingos Brazão (deputado federal e conselheiro do Tribunal de Contas do estado, respectivamente), que os teria levado a encomendar sua morte. O texto foi aprovado. Em delação premiada, o ex-policial militar Ronnie Lessa, o assassino confesso, relata que uma generosa extensão de terra naquela vizinhança, sobre a qual os Brazão pretendiam avançar ilegalmente, foi oferecida a ele como pagamento pelo crime — algo que renderia lucro de “uns 100 milhões de reais”. VEJA visitou as imediações, um terreno vigiado por homens armados que pararam a reportagem, justificando: “Os caras observam tudo e mandaram perguntar o que vocês estão fazendo aqui”. Foi a senha para dar meia-volta e ir embora.
Um mergulho na delação do executor da barbárie contra Marielle ajuda a entender os labirintos da grilagem, que envolvem instituições variadas e a ousadia de quem nada teme. A primeira providência dos marginais é limpar a área que está na mira e cercar o terreno o quanto antes. Em geral, são terras particulares ou devolutas, estas últimas do governo — ambas sem uso. Aí entra em cena uma bem azeitada engrenagem, que envolve um topógrafo para avaliar as condições do solo e despachantes com esquema em cartórios, de onde a documentação falsa sai com timbres e carimbos. Nada que demore mais do que quinze dias após a invasão, informa Lessa. As investigações conduzidas sustentam que, em algumas das transações, agentes do próprio município são consultados pelos bandidos sobre o status da propriedade, e as quadrilhas se valem de laranjas para tocar a operação, colocando como donos gente humilde para acobertar o negócio. Essa seria, inclusive, uma das táticas empregadas pelos Brazão em sua atividade grileira, conforme denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR).
A estratégia básica nesse nicho da criminalidade, tocado a toda pelos milicianos, é recrutar pessoal para ocupar terrenos e, mais tarde, reivindicar a posse e pôr o edifício de pé em tempo recorde — a média para tudo ficar pronto é de quatro meses, um terço do que leva uma construção regular, daí a notória fragilidade das estruturas. Apenas nos últimos três anos, um serviço especializado da prefeitura carioca recebeu cerca de 1 500 denúncias de ocupações ilegais e obras sem licença. “Ao atacar essa atividade, sabemos que estamos asfixiando uma parte financeira vital dessas organizações, que têm no mercado imobiliário valiosa fonte de renda”, afirma Brenno Carnevale, secretário municipal de Ordem Pública do Rio. Desde 2021, foram 3 500 demolições — 70% delas em áreas sob o jugo da bandidagem, o que dá os contornos do quão avançada ela está. O prejuízo estimado para o caixa das quadrilhas é de algo como meio bilhão de reais.
Investigações mostram que essas facções usam de criatividade para atuar à margem da lei, como se observou ao lado de uma comunidade da Zona Oeste, onde a solução da milícia local para evitar a demolição de um edifício desabitado (portanto, passível de demolição sem autorização judicial) foi repousar um par de sapatos sobre um tapete acomodado na porta, instalar cortinas nas janelas e pendurar roupas na varanda. Detalhe: por dentro, o imóvel de três andares ainda estava no esqueleto, conforme revelam as imagens cedidas pelo MP (veja abaixo). “O crescimento dessas ocupações levou o MPRJ a criar uma força-tarefa para não só atuar no combate, como fazer um trabalho preventivo e municiar as investigações”, conta Fabio Corrêa, coordenador do Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do MP do Rio.
Em uma visita à Muzema, território da região onde a milícia fatura alto com uma profusão de construções em áreas griladas, a reportagem verificou que apartamentos ilegais são vendidos com a intermediação da própria associação de moradores. Um corretor ligado à quadrilha explicou a VEJA que é a entidade que concede um “certificado de propriedade” ao morador. O lucro se multiplica ainda com aluguéis, administração e cobrança de um “imposto” quando o dono resolve repassar o imóvel. “Não há dúvidas de que esses esquemas se proliferam com a conivência de políticos, que trocam facilidades de olho em futuros votos na região”, enfatiza o sociólogo José Cláudio Alves.
Na Câmara de Vereadores, a grilagem ganha impulso por meio de um dispositivo legal que transforma loteamentos em Áreas Especiais de Interesse Social (Aeis). O mecanismo, criado com o louvável propósito de atender aos mais pobres, acaba por ter seu fim desvirtuado. “Todo mundo aqui tem pânico de votar contra as Aeis e sofrer retaliações”, diz um parlamentar, que pediu anonimato. Desde a criação do instrumento, três décadas atrás, foram aprovadas mais de 1 000 Aeis, a imensa maioria em territórios onde o crime manda e desmanda. “É fundamental haver uma metodologia rigorosa para acompanhar esses projetos”, alerta a vereadora Tainá de Paula, do PT. Por duas vezes, Chiquinho Brazão propôs, com sucesso, a criação de tais áreas — ambas na Zona Oeste.
Um dado que confere contornos ao nó fundiário do Rio são as denúncias contra loteamentos e obras ilegais, uma média de duas por dia nos últimos cinco anos — entre as mais recorrentes do Disque Denúncia, segundo recente levantamento. “O poder público não consegue responder na velocidade com que o crime organizado age. É preciso ganhar agilidade e dispor de leis menos permissivas”, afirma o antropólogo Paulo Storani, ex-capitão do Bope, o batalhão de elite fluminense. O setor imobiliário abre um vasto leque de negócios aos milicianos, grupos paramilitares que, num passado não tão distante assim, eram vistos como provedores de segurança em locais que o poder público deixava desguarnecidos. Nos territórios que mantêm sob suas garras, cobram taxas de serviços básicos, como gás e “gatonet”, montam redes de transporte irregular e obrigam os comerciantes a lhes pagar um percentual para poder trabalhar.
Dos anos de 1980 para cá, essas organizações não pararam de crescer. De acordo com o Mapa dos Grupos Armados do Rio, feito pela Universidade Federal Fluminense em parceria com o Instituto Fogo Cruzado, são as milícias que encabeçam a expansão criminosa no Rio, à frente do tráfico. Um avanço que se traduz em números apavorantes: essas quadrilhas têm atuação em 25% dos bairros cariocas, imensas áreas que funcionam à margem da lei e já respondem por 58,5% da extensão da cidade, porção onde vivem 2,5 milhões de habitantes. “A grilagem se mostrou um negócio central para esses bandidos, que têm no domínio territorial a base para suas atividades”, observa o sociólogo Daniel Hirata, coordenador do estudo. Foi o que certamente atraiu Lessa, que se converteria em líder de milícia (já tinha até pensado no nome, Medellín) e garantiria aos Brazão um profícuo reduto eleitoral, segundo as investigações. “Fui chamado para uma sociedade”, resumiu o assassino de Marielle. Um escracho à lei que, se não for combatido, continuará a espalhar o terror e ceifar vidas.
Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897