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Bons serviços e economia em alta estimulam migração para o interior

Muitos brasileiros foram se isolar na casa de campo e descobriram ali uma rotina melhor, acentuando movimento de deslocamento a cidades pequenas e médias

Por Ricardo Ferraz, Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h25 - Publicado em 15 jan 2021, 06h00
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  • FUGA PARA O INTERIOR
    (Jefferson Coppola/VEJA)

    Menos é mais

    Fernanda Vasconcelos, 44 anos, terapeuta

    “Eu e Danilo aproveitamos o isolamento para dar a nossos filhos mais contato com a natureza no sítio da família. Cultivar uma horta e andar pela mata nos ajudou a atravessar a crise. Percebemos que precisamos de pouco para viver bem e nos mudamos para Bragança Paulista, no interior de São Paulo.”

    Migrar é uma atividade tão antiga quanto a própria humanidade, consequência da busca de melhores condições de vida — mais caça e fontes de água na pré-história, mais espaço para fixar comunidades na Antiguidade, mais terra para cultivar e pastorear na Idade Média, mais territórios para ocupar no Novo Mundo, mais segurança e liberdade desde sempre. Ao longo do século XX, os deslocamentos seguiram a trilha aberta na Revolução Industrial: esvaziamento do campo e inchaço das cidades, culminando no aparecimento das megalópoles, capazes de aglomerar milhões de pessoas em uma área relativamente pequena. Como o ser humano é bicho que não se acomoda, nas últimas duas décadas o fluxo começou a se inverter, com as cidades médias atraindo um contingente de moradores urbanos cansados da vida corrida e atentos a economias que emergiam. Agora, veio a pandemia e, também no movimento migratório, seu onipresente efeito se fez sentir. Trabalhando a distância, livres da necessidade de bater o ponto no escritório, milhares de famílias estão pondo o pé na estrada, de mudança para recantos onde mais importante do que ganhar muito dinheiro e ter acesso ao que há de melhor em convívio social e cultura é poder desfrutar uma existência da mais alta qualidade.

    arte interior

    O migrante de hoje difere do que já estava indo para o interior no sentido de tratar sua opção não como um sonho, mas como uma realidade que enxerga de olhos bem abertos, firmada na comparação concreta entre o que tinha na metrópole — emprego, restaurantes, escolas de primeira — e o verde e a tranquilidade usufruídos em uma mudança que era para ser temporária e virou definitiva. Seu novo chão se localiza, principalmente, nos municípios situados em um raio de 100 quilômetros ao redor das capitais — cidades com boa oferta de serviços de saúde e educação, razoáveis opções de lazer e um conceito retirado da obsolescência e catapultado à condição de ambição: o ritmo de vida típico do interior. Segundo a mais recente estimativa de população realizada pelo IBGE, a das cidades entre 100 000 e 1 milhão de habitantes vem crescendo na última década a um ritmo até 50% mais rápido do que nas capitais — estas, por outro lado, detentoras de expansão minguada, ou mesmo zero. Atualmente, dois de cada três brasileiros residem em municípios com não mais do que meio milhão de habitantes. “Até 2014, as grandes cidades atraíam muitos trabalhadores por causa da ampla oferta de emprego, mas a crise econômica mudou essa tendência”, explica José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo do IBGE.

    Outra manifestação do atrativo pela almejada casa no campo — para morar mesmo, não para passar o fim de semana — está em uma pesquisa realizada pelo Zap+, que congrega os dois maiores portais de imóveis do Brasil, obtida com exclusividade por VEJA. Ela mostra que mais da metade — exatamente 59% — dos moradores de São Paulo e de Belo Horizonte, se tivesse de decidir neste momento sobre ir morar em um lugar menor, diria sim à mudança. No Rio de Janeiro, a disposição é ainda maior: 67%. O casal Fernanda, 44 anos, e Danilo Vasconcelos, 48, integra a turma dos novos migrantes. Por causa da pandemia, saiu de São Paulo e instalou-se com os filhos na casa de campo em Bragança Paulista, a 94 quilômetros de distância. Agora, resolveu que lá é o seu lugar: alugou uma casa ampla em condomínio fechado, matriculou as crianças em uma escola com 30 000 metros quadrados de área verde e planeja se mudar de vez. “Percebi que precisava de pouco para viver bem e que o contato com a natureza era fundamental. Não me vejo mais voltando a morar em São Paulo”, reconhece Fernanda.

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    João Tucci
    (Cristiano Mariz/VEJA)

    Sai avião, entra arara

    João Tucci, 45 anos,analista financeiro

    “Há dois anos comecei a questionar a vida em São Paulo, trabalhando doze horas por dia. Conheci a Chapada dos Veadeiros, me encantei, virei gerente de uma pousada e entrei para a ponte aérea. Na pandemia, mudei de vez. Agora, tomo banho de cachoeira, medito e, em vez de aviões, ouço o canto das araras.”

    Os motivos citados para a virada de rumo são conhecidos: violência, poluição, trânsito e a brutal desigualdade social exposta nas metrópoles. O arquiteto carioca Hélio Pellegrino, 68 anos, desistiu do Rio de Janeiro e foi buscar a tal felicidade em Búzios, balneário a quase 200 quilômetros de distância. “No Rio, andar pela rua à noite, um dos grandes prazeres do carioca, passou a ser uma roleta-russa. Nunca se sabe quem será a próxima vítima”, critica Pellegrino, que tem assumido menos projetos e aproveita o tempo livre para pintar, tocar piano e violão e fazer caminhadas pela exuberante Praia da Ferradura. O fluxo para cidades menores tem, é claro, reflexo no mercado imobiliário. Na Baixada Santista, a compra e venda de imóveis subiu 31% no terceiro trimestre de 2020, em comparação com o mesmo período do ano anterior, contra meros 5% na região metropolitana de São Paulo. Nas cidades no cobiçado raio de 100 quilômetros, área que engloba Sorocaba, Itu, Jundiaí, Bragança Paulista e Atibaia, os negócios cresceram embalados por uma taxa de 25%.

    As casas que os migrantes urbanos estão comprando e alugando oferecem duas características imprescindíveis: área verde e cômodos que possam ser adaptados para home office. “Muitas famílias não têm renda para adquirir um imóvel com esse perfil em São Paulo e se mudam para o interior, onde o metro quadrado é bem mais barato”, explica Patricia Ferraz, diretora de relações institucionais do Registro de Imóveis do Brasil, que congrega cartórios de vários estados. “A pandemia escancarou nossa necessidade por espaço, tanto interno quanto externo”, diz Ju Collen, funcionária pública de 46 anos que está prestes a trocar Porto Alegre por Gramado, a 150 quilômetros de distância.

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    Luiz Soares
    (Pedro Silveira/VEJA)

    Troca de endereço

    Luiz Soares, 48 anos,dono de confecção

    “Vim para minha casa de veraneio na Praia do Forte para fugir da pandemia, mas me acostumei à rotina de esportes, banhos de mar e acesso aos bons restaurantes locais. Mudei de endereço: moro aqui e só apareço de vez em quando na casa de Salvador. Tenho qualidade de vida e segurança, sem perder o agito.”

    Um dos motores econômicos que impulsionam a migração atual é a mudança profunda nas relações de trabalho trazida pela pandemia. A jornada de quem manteve o emprego durante o período de isolamento social caiu 14% e a renda média, em efeito dominó, diminuiu 20%, segundo uma pesquisa da FGV-RJ. Enquanto apertava o cinto, uma leva de brasileiros fez as malas em busca de vida mais simples e ao mesmo tempo de maior qualidade. O que se observa neste movimento é uma inesperada inversão das prioridades das famílias. “Nas classes mais abastadas, com recurso para mudanças radicais, ganhar dinheiro passou a ser menos importante do que aproveitar a vida”, ressalta Marcelo Neri, diretor da FGV Social.

    Helio Pellegrino
    (Alex Ferro/VEJA)
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    Adeus, depressão

    Hélio Pellegrino, 68 anos, arquiteto

    “Morava em uma casa espaçosa no Rio de Janeiro e tinha um escritório de arquitetura bem-sucedido. Mas a violência e a desigualdade social me deixavam cada vez mais deprimido. Quando me instalei na casa de Búzios, vi que era para sempre. Aqui faço o que realmente gosto: pinto, toco violão, namoro e vou à praia.”

    Um estudo do Ipea revelou que quase um quarto das ocupações brasileiras está apto a fazer a transição para o home office e são justamente os ocupantes dessas posições, em boa parte situadas no setor financeiro e de tecnologia, que mais se veem à vontade nestes tempos para mudar de vida. Durante quase duas décadas João Tucci, 45 anos, analista financeiro de uma grande empresa de consultoria, experimentou a rotina extenuante de até doze horas de trabalho por dia. Há cinco anos, em plena crise de identidade, conheceu a Chapada dos Veadeiros, em Goiás, e se apaixonou pelo local. Como em um namoro, ele passou a se revezar entre Alto Paraíso e São Paulo — até a chegada da pandemia desembocar em união estável. Tucci se mudou de vez para a Chapada e de lá presta sua consultoria aos clientes, além de ser gerente de uma pousada. “Continuo a fazer o que gosto, mas agora, em vez de barulho de avião na janela, tenho o canto das araras”, comemora, feliz da vida. Embora ainda esteja em fase de consolidação, o fenômeno já é encarado como uma nova etapa dos deslocamentos internos que a população empreende em épocas distintas.

    A engrenagem que movimenta as migrações brasileiras tem uma relação histórica com os efeitos da desigualdade social. Mal as primeiras fábricas começaram a se instalar no país, há quase 100 anos, e milhões de pessoas das regiões mais pobres, principalmente do Norte e Nordeste, pegaram seus poucos pertences, deram adeus à zona rural e foram tentar a vida no Sul maravilha. Assim caminharam os brasileiros até o fim do século XX, quando a meia volta começou. A descentralização da indústria e a expansão das fronteiras agrícolas fizeram o interior ser atraente de novo e suas cidades entraram para o rol das localidades recebedoras de mão de obra, em uma dinâmica classificada de “rotatividade migratória”. No arranjo que se desenvolveu durante a pandemia, uma parcela dos migrantes combina o melhor dos dois mundos: muita gente, em vez de ir embora de vez, optou pela dupla residência. Dono de uma confecção de moda praia, Luiz Soares, 48 anos, morava em Salvador e costumava ir para a casa de veraneio na Praia do Forte, a 85 quilômetros, nos fins de semana e feriados. Para cumprir o isolamento social, acabou se instalando na segunda casa e inverteu a ordem dos endereços. Mantém um pé na capital, para compromissos de trabalho, mas mora mesmo na praia. “Aqui tenho qualidade de vida, conforto e segurança sem perder o agito”, alegra-se.

    Ju Collen
    (Daniel Marenco/VEJA)
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    Vida espaçosa

    Ju Collen, 46 anos, funcionária pública

    “Sempre quisemos ter um sítio para relaxar nas horas de folga. O isolamento no apartamento em Porto Alegre mudou nossos planos. Compramos um terreno em Gramado e nossa casa, com uma bela vista da Serra Gaúcha, acaba de ficar pronta, satisfazendo a necessidade de espaço interno e externo.”

    Os especialistas antecipam que a migração de pessoas com recursos suficientes para sustentar duas casas deve levar riqueza e alterar de forma relevante o perfil de consumo dos municípios médios e pequenos. Atualmente, as cidades com até 500 000 habitantes concentram 68% da população, 58% do PIB e 237 dos 577 shopping centers em atividade no Brasil. A expectativa é que a proporção seja cada vez maior, à medida que o agronegócio se expanda e a busca de qualidade de vida se amplie — uma aliança que tem tudo para mudar para melhor a cara do interior. “O deslocamento das classes mais abastadas traz novos contornos aos processos migratórios e reflete a inserção do Brasil em um contexto global. O território perde importância, já que o mundo está conectado em rede e as relações ocorrem por meio da tecnologia”, explica Rosana Baeninger, demógrafa e professora do Núcleo de Estudos de População da Unicamp. Nos Estados Unidos, onde as migrações rotativas são vistas há mais tempo, os municípios do entorno dos grandes centros urbanos já apresentam um perfil menos provinciano. “Muitos subúrbios estão se reformando e ganhando contornos mais urbanos, com centros comerciais, restaurantes e boas escolas”, lembra James Hughes, professor de planejamento urbano da Universidade Rutgers, em Nova Jersey.

    Empurradas para as moradias mais amplas do entorno, em vez de se isolarem em minúsculos apartamentos, cerca de 100 000 pessoas acabaram optando de vez por sair de Man­hattan, o bairro mais habitado de Nova York, a meca cosmopolita do planeta, e pelo menos 30 000 foram embora de São Francisco ao longo da pandemia. Em compensação, Santa Maria e Santa Bárbara, nas imediações de Los Angeles, receberam 124% mais moradores neste ano, em comparação com o ano passado. Louisville, na encruzilhada entre Nova York e Chicago, ganhou 113% mais moradores e Buffalo, no estado de Nova York, aumentou sua população em 80%. A fuga da megalópole se repete em países como Japão — Tóquio subtraiu 30 000 habitantes — e Austrália, onde, desde março, 14 000 pessoas deixaram Sidney e 25 000 deram adeus a Melbourne. “Hoje, há uma competição por gente talentosa, criativa e inovadora. As cidades médias têm tudo para se beneficiar com a absorção dessa mão de obra qualificada”, diz Robert Muggah, fundador do Instituto Igarapé e uma das maiores autoridades sobre o tema. Enquanto a humanidade se desloca, o mundo se transforma.

    Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721

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